sexta-feira, 31 de julho de 2009

O RETRATO DE BERENICE

Seu Martiniano observa a foto da filha Berenice todos os dias e limpa, cuidadosamente, o vidro que aprisiona o rosto da menina e serve de adorno à pequena sala da casinha onde mora, perto de uma cidade da qual o nome agora não importa. Berenice, carinhosamente chamada de SANTINHA por todos os moradores próximos e distantes, sempre foi saudada nas missas de domingo, quando a igrejinha improvisada se enchia de fiéis, católicos praticantes e beatas ortodoxas para ouvir as palavras sagradas do PADRE JOSÉ, chefe da paróquia e líder espiritual das crianças e velhinhos em estado terminal. Berenice sonhava, constantemente, com cavalos brancos alados e rosas vermelhas, e dizia ao pai que eram anjos fantasiados para uma festa no céu. Seu Martiniano ouvia com atenção e achava que a filha era esquisita e abençoada pelos santos que protegem as crianças durante o sono profundo de todas as noites. Hoje o sol de verão esquenta a casa e os sonhos de seu Martiniano de maneira diferente, talvez mais triste. É que os olhos de Berenice, presos ao seu rosto de menina morta e ao vidro translúcido que transforma o seu sorriso em choro, parecem preencher a sala da casinha pobre com as anotações borradas da memória do seu pai, que sente dores insuportáveis quando lembra da filha.
Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Dona Albertina e seu Antônio

Dona Albertina observa a capela todos os dias. Limpa com um pano seco as imagens dispostas no altar e retira os restos de velas que durante toda a semana iluminaram ansejos, olhos lacrimejantes e trouxeram esperanças de cura para dores incuráveis que atravessam as noites sertanejas, machucando e marcando com ferro e fogo corpos que ignoram o cansaço e o tempo. Seu Antônio, o beato vidente, defensor incansável dos mais humildes, ajudou na construção da capela e na lapidação das mentalidades mais progressistas , sempre pensando numa vida menos dura, sem os castigos que dilaceram destinos e mastigam futuros moldados pelo sol de todos os dias. A capela, sustentada pela fé que preenche o cotidiano abafado com nuvens e presságios, nada mais é que um sonho cultivado por dona Albertina e seu Antônio. O povoado, destruído e engolido pelo açude após uma guerra injusta, é apontado pelos meninos da rua quando perguntam o local exato do Vale da Morte, onde soldados e jagunços tiveram suas roupas e peles espetadas pelo couro da macambira. O restante da estória está nos livros de história e na memória de seu Antônio, que partiu para a terra prometida e levou dona Albertina como sua conselheira . Acho que não voltam nunca mais!
Gurgel de Oliveira

A foto que ilustra este texto é uma instalação do fotógrafo Claude Santose e  está exposta no Parque Nacional de Canudos. O meu muito obrigado.