quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

AS FADAS DE YORKSHIRE













Yorkshire é o maior condado da Inglaterra, cobrindo aproximadamente quinze mil quilômetros quadrados, com uma população de cinco milhões de habitantes. Na primeira metade do século vinte, acho que no ano 1917 , uma notícia surpreendente estampou as páginas de jornais do mundo inteiro e os notíciários das emissoras de televisão não falavam de outra coisa, durante os anos sessenta e setenta: as fadas fotografadas no vale Cottingley. Jornalistas e especialistas em fenômenos sobrenaturais de todas as partes foram para o local em busca de explicações. As crianças envolvidas no caso, Elsie Wright e Frances Griffiths, que viram as fadas, tiveram suas vidas vasculhadas e a infância interrompida. O inverno passou a ter outras cores e os moradores das regiões mais próximas mudaram de comportamento e começaram a olhar o mundo pela mesma janela. As noites emanavam mistério e expectativa. Os caçadores já não exploravam a mata após o cair da tarde. Um clima de saudade embalava o sono dos meninos e cobria a madrugada com esperança e olhares. A paz reinou no coração de todos. Elsie e Frances faleceram num domingo chuvoso e suas faces foram adornadas com flores e perfume. Quem foi ao funeral diz ter visto luzes em volta dos corpos. Uns achavam que eram grandes vagalumes, guardiães das crianças mortas. Outros apostaram no retorno das fadas, senhoras da escuridão das florestas e protetoras dos nossos caminhos, povoados de canções e  fantasias.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

SOBRE SEREIAS E CAÇADORES

Dona da nossa cabeça, amante dos segredos que emergem dos oceanos salgados, a mãe dos filhos peixes nos ajuda a caminhar e acaricia as nossas almas com a doçura e a altivez da mãe que conhece tudo. A outra grande mãe, minha e de muitos outros, conhece o aconchego das matas e nos protege com o calor e a experiência da sua pele escura. Nos faz dormir e sonhar no embalo das cantigas de niná que brotam na essência das folhas. Quando estamos com ela, em qualquer lugar ou em lugar nenhum, o sentimento é de alegria e esperança no futuro...Vestimos os nossos corpos com a força que vem da TERRA e somos abraçados pelo caçador que nunca dorme, mas nos faz descansar como anjos desarmados. Ao lado da MÃE PRETA resiste uma sereia disposta ao ensino e ao aprendizado que fecha e abre caminhos de contentamentos e tristezas, absolutamente reais como o sol que, agora, tenta cochilar e espantar a quentura das saias e anáguas que não param de circular no TERREIRO. É hora do recolhimento, MÃE PRETA e sereia se resguardam em conchas e matas de encantamentos e susurros. Só me resta esperar por mais um dia e pedir a bênção. Axé!
GURGEL DE OLIVEIRA


quinta-feira, 12 de novembro de 2009

ONDE ESTÁ ELIZABETH ?

Na busca pelo sagrado, o povo INCA adorava cristais e evocava os APUS, espíritos das grandes montanhas, conselheiros e curandeiros durante os rituais andinos. Elizabeth, orientada pelos pássaros gigantes com cabeças humanas, os APUS, mudou-se da América do Norte para a cidade de Cuzco, no Peru, em busca de paz interior e respostas para as perguntas que a incomodavam desde criança. Numa noite escura, durante um ritual de cura e meditação , Elizabeth recebeu de presente um quartzo branco, brilhante, puro como as águas da cachoeira que umedecem a base da grande cordilheira. Esta estória acaba aqui; não se tem notícias de Elizabeth já faz bastante tempo. Suas roupas foram queimadas na maior praça da cidade e flores foram espalhadas na frente da casa onde morou com um amigo venezuelano. A vida não nos oferece respostas para muitas coisas. As montanhas continuam imponentes e indecifráveis. Centenas de pessoas, no mundo inteiro, continuam estudando os costumes dos INCAS. As cidades peruanas, com seus muros centenários, recebem milhões de turistas todos os anos . Alguns querem somente o artesanato colorido produzido com os fios da lhama. Outros querem notícias de Elizabeth, a americana que sumiu e enterrou seu coração em algum lugar de MACHU PICCHU, a ruína perdida no vale do rio Urubamba, ao pé da grande montanha.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

EDIFÍCIO SANTA FÉ

Segredos impronunciáveis ainda estão escondidos nos corredores e apartamentos do edifício Santa Fé. O prédio tem frente para o mar e é todo revestido de pastilhas brancas e azuis, muito comuns na arquitetura de linhas retas produzida nos anos sessenta do século vinte. A morte misteriosa da jovem bailarina que sonhava ganhar o mundo com muito talento e sapatilhas é lembrada pelos moradores mais antigos e ignorada pelos inquilinos mais jovens, cheios de sonhos promissores e projetos que incluem parcerias sexuais e farras à beira mar. Dona Georgina tem o hábito de montar quebra-cabeças de cem peças. Os puzzles formam bichos, paisagens e cidades. É uma forma que ela encontrou de expandir o seu universo de dezesseis metros quadrados, enfeitado com bibelôs e os miados dos gatos sufocados e olhos quase sedosos. À noite, quando todos os pardos são felinos e o prédio se ilumina para acolher grandes amores ou pequenas desilusões, a música invade as escadas de incêndio e os elevadores de grades decoradas. Na opinião de dona Georgina, que terminou de montar mais um quebra-cabeças, é o fantasma da jovem bailarina assassinada, que tenta fazer na madrugada barulhenta o ensaio do seu próximo espetáculo, ao som inebriante dos que agonizam e tentam desfiar as cortinas que enrolam os encantos da morte.
GURGEL DE OLIVEIRA

terça-feira, 13 de outubro de 2009

DEVANEIOS - para Luciana Accioly

Sophia observa de longe os soldados armados que invadem as ruas de uma pequena cidade em Andorra. Das montanhas a natureza presencia mais um massacre que vitimiza crianças e velhos estrangeiros. Sophia espalha os brinquedos curdos pelo imenso terreno que cerca a casa onde vivem familiares e parentes agregados. As sirenes de alerta tocam num volume aterrorizante assustando a população que ainda respira. Sophia atira poemas pela janela dos fundos da casa. Jornais com notícias africanas se espalham pelas calçadas ensanguentadas, enfeitadas pelas portas de vidro quebradas com extrema violência e sem nenhum sentido. Meninas refugiadas correm a bordo de suas bonecas de louça compradas em Praga. Carrinhos de bebê descem escadarias de madeira nobre e esfregam veludo surrado nas paredes. O silêncio que vem das padarias é constrangedor. Os pães não foram assados e os estômagos choram famintos. Andorra sofre. Sua história desce pelos esgotos e a memória da cidade vira suco. Sophia observa tudo de uma distância quase real. É o mundo se mexendo diante de montanhas brancas, engolidas pelas nuvens que maltratam o final da tarde. Sophia caminha e procura a amiguinha de escola e a encontra próxima ao boeiro central da cidade, caçando bonequinhas de louça de origem tcheca.

GURGEL DE OLIVEIRA

sexta-feira, 31 de julho de 2009

O RETRATO DE BERENICE

Seu Martiniano observa a foto da filha Berenice todos os dias e limpa, cuidadosamente, o vidro que aprisiona o rosto da menina e serve de adorno à pequena sala da casinha onde mora, perto de uma cidade da qual o nome agora não importa. Berenice, carinhosamente chamada de SANTINHA por todos os moradores próximos e distantes, sempre foi saudada nas missas de domingo, quando a igrejinha improvisada se enchia de fiéis, católicos praticantes e beatas ortodoxas para ouvir as palavras sagradas do PADRE JOSÉ, chefe da paróquia e líder espiritual das crianças e velhinhos em estado terminal. Berenice sonhava, constantemente, com cavalos brancos alados e rosas vermelhas, e dizia ao pai que eram anjos fantasiados para uma festa no céu. Seu Martiniano ouvia com atenção e achava que a filha era esquisita e abençoada pelos santos que protegem as crianças durante o sono profundo de todas as noites. Hoje o sol de verão esquenta a casa e os sonhos de seu Martiniano de maneira diferente, talvez mais triste. É que os olhos de Berenice, presos ao seu rosto de menina morta e ao vidro translúcido que transforma o seu sorriso em choro, parecem preencher a sala da casinha pobre com as anotações borradas da memória do seu pai, que sente dores insuportáveis quando lembra da filha.
Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Dona Albertina e seu Antônio

Dona Albertina observa a capela todos os dias. Limpa com um pano seco as imagens dispostas no altar e retira os restos de velas que durante toda a semana iluminaram ansejos, olhos lacrimejantes e trouxeram esperanças de cura para dores incuráveis que atravessam as noites sertanejas, machucando e marcando com ferro e fogo corpos que ignoram o cansaço e o tempo. Seu Antônio, o beato vidente, defensor incansável dos mais humildes, ajudou na construção da capela e na lapidação das mentalidades mais progressistas , sempre pensando numa vida menos dura, sem os castigos que dilaceram destinos e mastigam futuros moldados pelo sol de todos os dias. A capela, sustentada pela fé que preenche o cotidiano abafado com nuvens e presságios, nada mais é que um sonho cultivado por dona Albertina e seu Antônio. O povoado, destruído e engolido pelo açude após uma guerra injusta, é apontado pelos meninos da rua quando perguntam o local exato do Vale da Morte, onde soldados e jagunços tiveram suas roupas e peles espetadas pelo couro da macambira. O restante da estória está nos livros de história e na memória de seu Antônio, que partiu para a terra prometida e levou dona Albertina como sua conselheira . Acho que não voltam nunca mais!
Gurgel de Oliveira

A foto que ilustra este texto é uma instalação do fotógrafo Claude Santose e  está exposta no Parque Nacional de Canudos. O meu muito obrigado.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

SEU JUSTINO

Seu Justino acordou às cinco horas da manhã. Queria sair cedinho em busca de trabalho e comida para os filhos e a mulher doente, dona Rosinha. Tomou banho na bica do quintal, bebeu o café com sabor da noite anterior e pensou sobre o seu passado numa cidade do interior nordestino, repleto de tardes de domingos não felizes. Seu Justino agora caminha por estradas e ruas acordadas, planejadas por homens capazes de tudo para imprimirem suas marcas ao longo da vida. Pessoas, rostos, mãos e objetos ocupam os espaços possíveis nas avenidas movimentadas. É o dia tomando forma, tentando ser forte e viril. Seu justino atravessa viadutos, cultiva lembranças dos filhos adultos e continua  sua caminhada em busca de esperanças, biscoitos recheados e almoços divertidos com a família. Seu Justino, homem de quase setenta anos, otimista e disposto para o trabalho, desapareceu lá para as bandas do subúrbio, onde os trens que rasgam o final da tarde engolem pessoas, esperanças e histórias de vida. Dona Rosinha, frágil e açoitada pelas epidemias, deseja reencontrar o marido, nem que seja em algum lugar da memória.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A visitante dos trópicos  atravessa a sala de jantar e cumprimenta os senhores que estão sentados à mesa de jacarandá cravejada com  marfim e jade.  Os castiçais e os tapetes que forram o chão de ladrilhos nos remetem aos sons e cheiros cítricos das  mentas tunisianas. O azul  dos lustres é o mesmo  que reveste os olhos da visitante.  Agora ela  sobe as escadas com corrimão de Mármore  Carrara, adornado com pequenos relevos lapidados em alabastro. Nas medinas, onde a vida real acontece de forma dura, cheia de ânsia, apego e fome de longevidade, as pessoas comuns correm em busca do pão e mergulham suas ironias e medos em porões de incertezas e lama. A visitante, descalça e coberta com uma túnica de buganvílias pintadas à mão, desce a escada com uma grinalda de tâmaras frescas e muitos pistaches em volta do rosto, e atira mosaicos romanos pelas grandes janelas do Norte africano, como se provocasse mais uma luta de gladiadores,  numa arena de Cartago.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Maria do Carmo, A Estranha...

O meu nome é Maria do Carmo. Trabalho como empregada doméstica, tenho desejos estranhos e gostaria muito de conhecer Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. A minha filha morreu num acidente e não gosto de falar sobre o assunto. Tenho vestidos vermelhos...adoro vermelho e carne de porco assada. As pessoas não me encantam e a cidade onde moro é muito pequena e muito feia. Também gosto de poemas sujos, escritos por pessoas sujas e desajeitadas. Fiz uma tatuagem nas minhas costas...é um dragão com olhos muito grandes...parece um calango. A minha patroa me deu um perfume de aroma doce, não gosto e tenho dor de cabeça só de pensar. O meu corpo é como uma estrada perdida numa floresta encantada. Tenho vontade de aprisionar o tempo e comer iguarias exóticas numa confeitaria de Casablanca. Sobre os meus desejos estranhos... é muito difícil falar. Sinto crianças grudadas na minha pele. São crianças judias de algum lugar da Polônia. Elas choram muito e sentem a falta das mães que foram queimadas em campos de concentração nos anos de guerra. Sinto dores fortes nos olhos e um gosto de sapatos velhos na minha boca. Às vezes tenho a sensação de estar boiando num rio de águas vermelhas. Pessoas com roupas escuras atiram lenços brancos sobre Budapeste. Tenho saudades da Hungria e das casas que habitam ruas e vielas podres. Os meus olhos continuam doendo e não tenho vontade de chorar. Mundo estranho! Minha filha olha de longe e finge saudades dos meus abraços. Abraços amargos de uma mãe ausente que sente cólicas, tem desejos estranhos e não conhece Dubai...
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Serenata de Adeus para Virginia Woolf

As estranhas divindades que moram no fogo e dominam a agilidade e os segredos das salamandras são as mesmas divindades que nos acompanham quando decidimos partir para a Terra do Nunca, onde a pele e a carne se livram das dores mundanas e a nossa alma descansa. A senhora de rosto amargurado escreveu poemas tristes como as nuvens que fizeram de tudo para enfeitar o céu. Deixou para trás as doçuras da vida e caminhou, vestida de sombras, rumo ao lago de águas turvas e definitivas. Aos poucos, sem nenhuma pressa e engasgada pelas incertezas e saudades, retirou as pérolas do pescoço, cobriu os olhos com pequenas pedras frias e afogou a vida com paciência, coragem e precisão britânica. No fundo do lago, sem lápide, sem olhos e sem nome, o corpo franzino da poeta aquece e abraça algas e musgos, é amigo e parceiro inseparável do segredo das salamandras.
Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Quando Nada Mais É Importante...

Quando nada mais é importante, e o amanhecer é apenas um esforço do tempo para se manter acordado, é a hora de dar adeus aos nossos corpos fatigados pela falta da chuva que umedece e refresca a alma dos nossos olhos. Quando nada mais é importante, e o sol parece nos olhar com cara de choro e rugas de ressentimento , é o momento de retirar vagarosamente a pele apodrecida que reveste os nossos desejos mais sórdidos, e remover a máscara que plantaram nas nossas faces, quando dormíamos e sonhávamos com um mundo menos fétido. As linhas que estão impressas nas nossas mãos são as marcas dos cemitérios que nos perseguiram na infância e fizeram dos nossos finais de tarde pequenas cerimônias fúnebres, impregnadas de depressões domingueiras e interioranas. Quando nada mais é importante, nem mesmo os poemas assassinados de Emily Dickinson, é hora de fechar delicadamente os nossos livros, enforcar urgentemente a elegância das nossas emoções, e contar estórias para todas as crianças mortas.

Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 15 de maio de 2009

MADRE JOSEFA CLARA

O Convento de Santa Clara do Desterro, fundado em 1677, localizado no bairro de Nazaré, em Salvador, é famoso por sua arquitetura, pelos doces preparados carinhosamente e comercializados na lojinha que funciona pertinho da capela, e pela beleza dos móveis de jacarandá dos séculos dezoito e dezenove, que estão espalhados enfeitando salões, saletas e cantinhos de orações. Segundo alguns historiadores e relatos anônimos, numa tarde chuvosa do ano 1753, a bela Josefa Clara, jovem de família tradicional da época e prometida a Jesus Cristo para todo o sempre, foi flagrada na capela-mor, quase despida, acariciando as partes íntimas do padre Inácio Moreira Franco, substituto do capelão que havia falecido fazia pouco tempo. O escândalo repercutiu na província e logo chegou aos ouvidos da corte, que proibiu, a partir daquela data, o trânsito de padres nos conventos e locais religiosos frequentados por moças que dedicariam suas vidas aos apelos do sagrado. Madre Josefa Clara, de sexualidade imoderada, acometida de profunda tristeza e dores fortes no peito, chorou por muitas noites insones à espera de notícias do amado, mas nunca recebeu sequer umas poucas linhas escritas. Sofrida, sem nenhuma esperança de rever o grande amor, a freira trancou-se no cláustro, rasgou o corpo com uma casca afiada de ostra e deixou-se sangrar... até que os anjos viessem ao seu encontro e cobrissem a sua boca com pétalas de rosas e perdão.
Gurgel de Oliveira

terça-feira, 28 de abril de 2009

A MÃE QUE BALANÇA O BERÇO

Dona Eugênia é uma mulher de mais ou menos setenta anos de idade, sorriso gentilmente forçado e muitas estórias para contar. Cheguei na sua casa ao cair da tarde e logo percebi uma atmosfera de ausência e dor em cada cantinho por onde passávamos. Dona Engênia perdeu o filho querido em circunstâncias trágicas, durante uma briga de rua, em algum lugar da cidade de Salvador, no ano de mil novecentos e noventa e dois. A foto do rapaz está espalhada por toda a casa e todos os seus pertences arrumados em um quarto... roupas, sapatos, livros, capacetes, cartões com palavras amorosas de amigos que não acreditam na sua partida, presentes de namoradas e fotografias de momentos marcantes da sua vida. Dona Engênia arruma o quarto todos os dias, coloca flores nos vasos próximo das fotos do rapaz e reza para que ele não fique distante nunca. Durante a nossa conversa, já por volta das oito horas da noite, Dona Eugênia me oferece um café e chora dizendo sentir a presença do filho adorado. Confesso que fiquei emocionado diante dessa senhora e supliquei aos deuses resignação para as mães que arrumam os quartos dos filhos que dormem para sempre , mas que elas ainda não perceberam.
Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Jesus de Nazareno, Calor, Transformismo e Libélulas

Numa pequena cidade do recôncavo baiano, onde Jesus de Nazareno parece acalmar os ânimos e o calor, do alto de uma colina, o jovem Jean Márlus desfia o cotidiano com paciência, talento e uma enorme vontade de ser feliz. Durante o dia o garoto de 26 anos trabalha como eletricista, aderecista, montador de estruturas para o funcionamento das feiras e festas da cidade e decorador das cerimônias de casamentos, que acontecem de vez em quando, só para mexer com a rotina do lugar. À noite, quando todos os pardos viram gatos e o teor alcoólico interfere no metabolismo das praças e dos bares, o jovem Jean Márlus passa a se chamar Jhow Quevara, uma mocinha apimentada que veste roupas sintéticas e usa o corpo longilíneo para provocar e acender desejos proibidos, por entre pontes e becos. E começa a fechação! Viados saem de todos os lugares e enchem a praça de cores e gritinhos . A cosmética grita nos rostos de bonecas e olhos delineados. Os modelitos são estranhos e revelam corpinhos e personalidades fortes , assumidas. A música e as luzes tomam conta da praça e transformam a cobiça e o pecado em confetes e êxtase. Jhow sobe numa estrutura de madeira e mostra o que sabe fazer. Requebra e atira o seu olhar de odalisca faminta em direção às suas primeiras vítimas. O clima é quente e a festa esquenta ainda mais. Entre uma dança e outra, olhares desconhecidos se cruzam e marcam desencontros futuros. Jhow se afasta e segue o caminho do rio. A noite se alonga e promete loucuras. O jovem atravessa a ponte , ajeita o saiote artesanal enquanto a festa segue o seu destino e o aguarda, ansiosa e bela.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 22 de abril de 2009

ESPERANÇA E GLÓRIA

As ruas dacidade amanheceram molhadas e frias; os bairros mais distantes do centro sofrem e os seus moradores lamentam objetos perdidos e vidas em perigo. É sempre assim na histórica Salvador. Enquanto os tambores tocam no Pelourinho, milhares de pessoas tentam enxugar a umidade de um cotidiano quase sempre dolorido. É chegado o tempo de pensar em dias melhores. Dias em que não tenhamos que segurar os nossos sonhos para que as águas não os carreguem para longe de nós. É tempo de pensar no próximo e dar as mãos aos que nada comem. É tempo de arregaçar as mangas e fazer força para que o sol nos alcance com o calor e a luz. É hora de brilhar e distribuir sorrisos aos que cumprem pena. Aos que moram nos calabouços e se alimentam de terra e lama. A resignação traga fatalidades e crenças. A vontade de estar vivo supera qualquer sintoma de tristeza e intranquilidade. O mundo é uma armadilha e precisa ser vencido. Por que não pedir à Senhora das Águas que nos traga roupas secas e nos cubra com lençóis de esperança e glória? Será que é pedir muito? Acho que não! A solução sempre chega de onde menos esperamos. Axé!
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 15 de abril de 2009

CASA GRANDE, ENGENHO E CANAVIAIS


Chegamos à Fazenda Senhor do Bonfim por volta das oito horas da noite e fomos recebidos pela dona da casa, uma senhora simpática e carismática. A fazenda fica nos arredores de Nazaré das Farinhas, cidade de muitas estórias e da famosa farinha de copioba, uma das principais fontes econômicas da região. A casa impressiona pela fachada, móveis coloniais, lustres e arandelas de porcelana francesa da segunda metade do décimo oitavo século. O pé direito de todos os cômodos é muito alto, portas e janelas largas e uma vista intrigante para os verdes vales que servem de pasto para o gado e os cavalos. Tomamos banho e seguimos para a sala de visitas onde uma mesa repleta de coisas gostosas nos esperava. Matamos a fome e conversamos até altas horas como se não tivéssemos que fazer nada no dia seguinte. Já era madrugada quando nos dirigimos à varanda. O céu estava estrelado e quente. O canto dos pássaros noturnos rasgava as cortinas escuras que abraçavam a mata fechada. Gritos e pedidos de ajuda pareciam vir da senzala que fica na parte inferior da CASA- GRANDE. Mulheres negras corriam agarradas aos seus filhos rumo ao canavial. Palavras de ordem eram cuspidas das bocas dos FEITORES e o engenho iniciava mais uma jornada. A moenda e a roda d'água, sinônimos de sangue e progresso, testemunharam o nascimento do sol com repulsa e ressentimentos.
Gurgel de Oliveira

sábado, 4 de abril de 2009

Fogo, Água e Quiromancia

É manhã de quarta-feira. O galo cantou mais cedo para acordar o Senhor do Fogo. O homem que nos transmite noções de justiça e faz com que os nossos olhos sejam íntegros e austeros. As quartinhas já estão cheias e os obis já nos trouxeram recados e as punições que se fazem necessárias. As árvores estão mais verdes. Os desejos de prosperidade povoam a casa vermelha e se misturam com o barulho das saias velhas, guardadoras de cheiros, sonhos e cabeças exaustas. Não há mais desesperança. As lágrimas se foram nos braços e nos seios fartos da Mãe D'Água. As crianças correm. O sol acaricia os nossos corpos e borda sorrisos nas curvas mais sombrias das nossas almas. É hora de partir. As pontes estão de pé e nos convidam para um passeio pelo destino. Não importa onde nos levam os caminhos. As encruzilhadas escondem revelações que estão nas palmas das nossas mãos, tatuadas pelos deuses como estórias que nunca vão ser contadas. Só nos resta aproveitar. Hoje é quarta-feira e o Senhor do Fogo está prestes a descansar. Não façamos das nossas vidas uma cama fria. Existem promessas de dias mais felizes e noites de calmarias, tatuadas no mapa insólito e invisível que molda a nossa ânsia de despertar.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 27 de março de 2009

MARIA DO AMPARO

Os sapatos batem no tablado com muita força e determinação. Os violões são dedilhados por homens barbados, personagens secundários de lendas sevilhanas. Os babados vermelhos e pretos do vestido de seda rodopiam e impressionam os olhos dos forasteiros que circulam pela plateia. Maria do Amparo atira o seu olhar e se deixa viajar pela música que fala de bodas carregadas de incestos e contentamentos não vividos. Baila, Maria! Gritam os mais atirados. E Maria baila! A visão que temos do seu corpo é de uma tensão que incomoda e transforma o sono em convulsão. O som das castanholas que brigam e se contorcem nos seus dedos é o mesmo som inebriante que seduz os marinheiros gregos, na zona portuária de Barcelona. Maria do Amparo ilustra os sonhos e as vontades sórdidas de prostitutas e cafetões, que buscam ganhar suas vidas nas ilusões noturnas de pacatas vilas medievais, e que muitas vezes nos confundem com criaturas da noite, boêmios perdidos nos horizontes sujos de Madri. Baila, Maria! Baila e atira para bem longe a sensação de desassossego que nos causa o desamparo.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 20 de março de 2009

A NINFA DE BIZÂNCIO - Para Silvana Moura

A menina muçulmana corre pelas vielas de pedras da Capadócia. Nos olhos, a saudade de tempos remotos e das tardes que anunciavam as festas luxuriosas de Bizâncio. O império onde a fé e o poder eram cultuados como deuses ficava no Estreito de Bósforo, águas que separam oriente e ocidente e onde o canto dos pássaros é perturbado pelos gritos dos vendedores de tapetes, jóias e especiarias. O ouro em abundância e as gemas coloridas enfeitavam os corpos de mulheres manipuladoras de ilusões, ópio e prazeres incompletos. As termas públicas e as tabernas preparavam homens e ninfas turcas com bálsamos excitantes e compotas de damascos e mel. Alguns nativos da Capadócia afirmam que a menina muçulmana é a reencarnação de uma entidade etrusca, e que já foi vista no topo de minaretes e nas cúpulas sagradas das basílicas , clamando aos deuses e aos homens que a libertem das garras afiadas de Constantinopla.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 13 de março de 2009

SEXTA-FEIRA13

Vamos torcer para que as guerras não aconteçam e as mães não tenham que chorar pelos os seus soldados mortos.Vamos rezar e depositar flores brancas nos túmulos dos que se foram amarrados em bombas, defendendo o fundamentalismo religioso.Vamos ver filmes, ler livros e passear em sites que nos remetam ao prazer de viver pacificamente...simplesmente. Hoje é sexta-feira 13. Os mercados populares da cidade exalam cheiros e odores de mandingas preparadas pelos sábios senhores, detentores dos segredos das ervas e dos dialetos falados e cantados nos rituais banto. O hábito de carregar um galho de arruda atrás da orelha torna-se obrigatórioentre os que acreditam que o dia de hoje não trará doçuras. Mas não percamos as esperanças.As estrelas brilharão mais tarde e a noite nos trará o consolo que necessitamos para uma boa madrugada de sono . A lua cheia nos dará forças para que possamos atravessar a tarde com elegância e vontade de beijar o pôr-do-sol. Que a sorte nos abrace e cubra os nossos corpos com pétalas de rosas ocidentais; afinal, o dia hoje não está para brincadeiras...

Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 11 de março de 2009

SOBRE VERDADES E CASARÕES

Palavras presas em cartazes que não anunciam nada. Propagandas de prazeres baratos para todas as etnias e nacionalidades. Homens polacos em busca de coxas malhadas e sem nenhuma instrução. Lugares que oferecem de tudo, inclusive o calor proibido dos famosos quartos marroquinos. Bares e botecos que acolhem Pedro, João, Francisco e Helenas loucas por um beijo molhado vindo dos mares asiáticos. Monumento em arenito, coluna oitavada toscana revestida com azulejos portugueses do século XVIII encimada por adornos em porcelana branca. Casarões seculares que guardam nos cômodos curiosas histórias de herdeiros da colonização. Pessoas que passam, sem destino certo, às vezes desesperadas, às vezes caladas e, muitas vezes, cansadas de uma existência medíocre e sem nenhum sentido. Ruas estreitas e becos com cheiros fortes, mas com um pouco de encanto. Tenho todas estas coisas no lugar onde moro. Aos domingos, quando o sol insiste em partir deixando um raio de melancolia, fica o desejo de uma segunda-feira menos dura e mais próspera, em algum canto dos nossos olhos.
Gurgel de Oliveira

terça-feira, 10 de março de 2009

Os Quatro Cavaleiros

À sombra da frondosa amendoeira, os quatro cavaleiros descansam e desfiam o segredo dos oráculos. Espadas de cortes mágicos refletem o semblante austero do grande senhor de todos os feiticeiros. E a mulher de olhos cristalizados risca os caminhos de um futuro próspero em volta das pedras que cobrem o chão. É no pequeno espaço de tempo que separa os trovões dos relâmpagos que a frondosa amendoeira entorpece as suas folhas em suaves perfumes. E os quatro cavaleiros, a bordo de antílopes, partem para longas e inimagináveis viagens, conduzidos e confortados por uma fina e imprevisível neblina...

Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 9 de março de 2009

A CIDADE E AS PESSOAS

A cidade acorda agitada. A mulher das ruas carrega pedaços de imagens barrocas nas mãos sujas que já embalaram crianças. Por onde andarão as crianças que brincavam de desenhar cavalos nos vestidos longos de seda que dormiam aprisionados em vitrines frias e sem cores? Pessoas correm e a cidade acorda ainda mais...A sarjeta se esconde e carrega para dentro dos esgotos a sede de fantasia e o sêmen da noite anterior...do dia anterior que virou noite e transformou esquinas e praças em parques de perversão. Um velhinho sábio e experiente passa para um outro plano. A família se reúne para comemorar a passagem e chorar as cores das colagens que já fazem parte da parede do apartamento. Livros e cantigas se misturam com as brincadeiras de quintal. A infância do viajante é resgatada como um circo órfão povoado pelos malabaristas sertanejos e bailarinas embriagadas com tantas fantasias. Todos comem muito e a cidade continua agitada. A fotógrafa arruma na mesa da sala de jantar registros de imagens e viagens que nunca vão nos permitir esquecer que a vida é um conjunto de olhares famintos, espalhados pelos lugares que dormem, acordam e suspiram todos os dias.
Gurgel de Oliveira

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

O Menino Azul

Um cheiro adocicado de ervas desliza pelas cortinas da noite e embala, com uma suave alegria, as paredes brancas do velho quarto de dormir...
Imagens de anjos saltam dos olhos da mulher antiga e bailam no assoalho dos corredores frios e urgentes...
O relógio de madeira estrangeira, anfitrião da sesta, anuncia com elegância européia um longo período de horas intranquilas...
E o menino azul, de passado turquesa e olhos da cor dos mares, borda cavalos negros no tapete que descansa num canto significativo da sala de jantar...

Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

ENTERRO DE REDE

A frágil luminosidade que banha o cair da tarde abraça as ruelas do pequeno vilarejo.
A rede manchada pelo tempo carrega o corpo do senhor morto, pelos caminhos de terra seca da caatinga.
Lágrimas de saudade ajudam a compor os rostos dos familiares que mais parecem réplicas de ex-votos.
E um sentimento de perda ecoa pelas portas da estreita capela durante o ritual de corpo presente.
Enquanto o tempo vai passando construindo os sonhos dos mortos e matando a fome da boca da noite...
Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

HALLOWEEN

A cidade, sonolenta, foi tragada pelas feiticeiras.
Os prédios foram vestidos com roupas pretas e silêncio.
E as praças, esvaziadas e escuras, esconderam suas estátuas em caixas repletas de dúvidas.
Nada mais se ouviu. Os cinemas fecharam em clima de oração.
Os mendigos, de rostos podres e linguas embriagadas, fizeram dos muros grafitados esconderijos de medo.
Tudo virou feitiço na cidade fantasma.
O teatro, de fachada imponente e desenhos seculares, mastigou os seus atores e cuspiu sementes na platéia...

Gurgel de oliveira

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Dona Maria das Dores

Dona Maria prepara o café quando a casa ainda dorme. No quintal, as primeiras luzes do dia despertam lembranças e épocas remotas. O cachorro corre para todos os lados da casa. Nas ruas, os vendedores de sonhos e promessas desenham um futuro cheio de surpresas e passam, vagarosamente, exibindo roupas velhas, guardiãs de muitas conversas e alvoradas de domingo. Dona Maria arruma a mesa como se fosse a última refeição. As dores fortes nas pernas são o prenúncio de manhãs inválidas , com unguentos e bastante água quente. O tempo é retratado na parede da sala exibindo fotos dos antigos moradores do casarão. Dona Maria, com o seu experiente olhar, carrega sua angústia pelos corredores enquanto os seus atuais moradores acordam, embalados por bocejos e sonhos imemoriais.
Gurgel de Oliveira