quinta-feira, 28 de novembro de 2013

SONHO DESFEITO

Alguém esteve aqui. Tem  marcas de sapatos impressas na lama. Pedaços de tecidos dão cores ao caminho. As páginas do livro foram rasgadas e jogadas ao fogo. A clareira ainda dorme. O mato demora para despertar. É uma outra forma de tempo .Cantar não é a melhor maneira  de entender o que aconteceu. Chorar também não. Fiquemos fortes e observemos. A neblina fura as folhas das árvores. O rio pode ser ouvido se ficarmos quietos. A umidade amolece as unhas. Não temos mais os nossos dentes. Se perderam no encanto e na fumaça do frio. Esquecemos os nossos nomes e quem somos não importa mais. A gosma das árvores vai cobrir os nossos corpos. O perdão virá com o tempo. Não há espaço para festas e sorrisos.
Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

ENCANTAMENTO

O cozinheiro preparou o jantar. Tem aves, porco e sobremesas.  Taças e bandejas são de cristais, das proximidades de Veneza. Um cão late próximo ao portão. Figurinos,flores e cortinas  fazem as cores da sala. Um clima medieval reveste as paredes. Crianças batem na porta,  querem doces e travessuras. A perfeição da arte impressiona o espectador. As lentes aumentam o ambiente e a luz cria mistérios que incomodam os olhares. É a magia  do cinema. Mundos esculpídos com lentes e mãos. Partidas redesenhadas  para lugares escolhidos que enganam organismos e veias. Cartazes  afixados nos tapumes. A sala escurece de forma lenta e programada. Corações batem no desconforto. Cadeiras  são  engolida pelo silêncio. É o momento da ilusão.

Gurgel de Oliveira

Cena do Filme O Cozinheiro, O Ladrão, Sua Mulher e O Amante, de Peter Greenaway/foto bublicidade.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

ENCONTRO

Passos na escada. Mesa composta de fruteiras e bichos do mar. Pinceladas sem controle que vão e retornam sem nada para falar.  Águas de rios molham pontes e pedras. Broches enfeitam o colo de madames empalhadas. E o Sol não dz a que veio. Um livro de Guimarães Rosa é encontrado próximo  ao riacho. Alguma estória vai ser contada para que o texto faça sentido. Esperemos o cair da tarde. Fogueiras trazem inspiração e sono. A roda se forma com a viola e o calor. As estrelas ficam mais próximas. O regionalismo da música é o que precisamos para que não esqueçamos dos nossos rostos. Os passos da escada sumiram. Os bichos do mar agora enfeitam as paredes. Já é tarde para contar verdades.
Gurgel de Oliveira

terça-feira, 12 de novembro de 2013

RECUERDO

Saiu sem arrumar a cama. Livros e jornais sobre o tapete da sala. Paredes sujas e marcas de dedos na janela. No corredor, pele, restos de unhas e um espelho quebrado. Nenhum bilhete foi deixado. Muitos dias se passaram. As mães se abraçam. Corações choram na calçada e as carruagens passam. Fotos são espalhadas pelas ruas. A casa sente calafrios e saudade. É a hora de esquecer. Portas serão lacradas. O cheiro de suor sufoca lembranças e perfumes. Arrumar os armários causa terror  e sofrimento. Todos querem fechar os corpos  e dormir. Os olhos da rua não são mais os mesmos. Lágrimas escorrem no asfalto. O altar se enche de luzes. Mãos postas recorrem ao desconhecido. Respostas são plantadas no vento.

Gurgel de Oliveira





Carlinhos. Desaparecido em 1973.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O ÚLTIMO BEIJO DA DEUSA

Vale das Rainhas, Tebas. O Egito revela ao mundo o descanso de Nefertari, a amada de  Mut. O senet já havia previsto que a vida seria uma passagem pelos portais do tempo. Descansar os olhos sobre o calcáreo, rochas sedimentares ou a travessia  para o sagrado, é como elevar o espírito e sentir a  tinta  esboçando os dedos dos escribas pelos caminhos do corpo. Rammsés II vigia o rosto  da amada e o Vale do Nilo chora. A partida vai ser breve. Escravos da Núbia preparam a liteira para a grande viagem. Joias, vasos e frutas, companheiros dos mortos, já estão próximos ao sarcófago. O ano é 1255 a. C. A arte toma novos rumos. A lei da frontalidade comanda as mudanças estéticas e a estatuária dá formas ao alabastro. É o progresso chegando ao mundo antigo. Nefertari é pele e bandagens. A mastaba se abre e engole camelos e deuses.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O INQUILINO

Norman retornou à casa. Mamãe está no quarto e tem sorrisos nos dedos. Um vulto anda pelos corredores e bate à porta. Vento e  tempo choram  mais rápido. A chuva ameaça cair. Velas e  medo rondam  os castiçais. O lustre ainda é o mesmo. Sala e  banheiro foram isolados. No hotel não há hóspedes. Lagartos cavam  o terreno. Norman lembra de tudo. Mamãe chama pela janela. Pão e  café esperam na mesa. Um ruído vem do porão. A sopa não  tem o sabor de antes. Leituras do passado causam  tumulto. Um corvo  olha de longe. Algo está prestes a acontecer. Guardar rancor afeta o estômago e resseca a saliva. A canção provoca fadiga.  Norman tenta dormir e os fantasmas acordam. Marion Crane   não mora mais aqui. O hotel se recolhe. Roupas e varais  perdem as cores e   somem no deserto.

Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

SEQUESTRO

Espelhos foram jogados  pelas ruas do bairro. A feira é refletida de diversas formas. Olhar a própria imagem causa repulsa e incômodo nos olhos. Mais espelhos são afixados nos muros. As casas ganham novos rostos. A Senhora Smith vai à igreja mais próxima pedir perdão aos santos. Copos de prata estão sobre o mármore. As velas perderam a força. Orações e  berços  não existem mais. A cidade mergulha  em reflexos. A luz incomoda os cegos. Marina passeia com vestido de festa e os meses passam como um filme. Dores no estômago provocam  vertigem. O rio se rende ao silêncio. Alguém bate na porta dos fundos. A notícia causa espanto aos  moradores e ninguém senta para comer. O perfume de Marina está sempre presente. O momento pede recato e silêncio. Apaguem as luzes.

Gurgel de Oliveira

Foto de domínio público.

sábado, 2 de novembro de 2013

O BANQUETE - PARA RILTON PRIMO E CECÍLIA

A mesa está posta. Iguarias, cristais e porcelana se misturam. Os convidados estão  a caminho. Olhares despertam estômagos urgentes. O cheiro do vinho nos leva ao Alenque. As cores sentem fome. Ente um gole e outro, o prazer do sabor. Roma está está no cardápio. A música adorna ouvidos e escadas. Tem comida no forno. Um linguado é flambado ao gosto dos paladares refinados. É o baile da gula. Uma pausa na conversa para um gole destilado. Rosas ao  Cheff que manipula ervas e pesca. A vida é uma busca ao prazer. Que venham as entradas. A fome é amante do desejo. O barulho dos talheres lembra uma sinfonia banhada com caramelo. Platão vai chegar mais tarde.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

POLITEÍSMO E POUCA FÉ

A floresta guarda segredos e as árvores nos olham de cima. As trilhas são muitas e o perigo é real. Galhos e folhas  escondem encantos e um mundo não visível. Cleópatra Sétima prepara unguentos e estica papiros. Um homem atravessa um rio e acaricia o sagrado. A perda da crença entristece os deuses. Ninfas rasgam montanhas e nos trazem alegrias. Sátiros desafiam a velocidade e  Centauros adormecem diante das pedras.  Górgonas se desfazem, viram pó. E o livro se fecha no fundo da terra. Não acreditar provoca a lâmina e o seu corte. O altar é adornado com frutas e flores. Velas serão despertadas numa sala escura. O cheiro da parafina não faz bem ao corpo. Cobrir as imagens com véus é vedar os lábios da existência. Não vamos rezar mais. As igrejas serão apenas depósitos de ex-votos.
Gurgel de Oliveira

AS VÀRIAS FACES DO ENCONTRO

Registro de um momento oportuno. É hora de brindar. Abraços não foram esquecidos. É rápida a passagem do tempo. O balcão navega e estórias são recontadas. Lá fora vendem de tudo. A imagem é o sumo  da alegria. Os sorrisos bailam e os pratos  se divertem. Sopros de outubro em todos os corações. Copos, garrafas e mãos em movimento. O abraço da tarde desperta as lembranças. Encontros de boteco. Cores e paixões não perdem o brilho e  aproximam  os ímpares. É muito cedo para o recolhimento. Mais sorrisos flutuam nas prateleiras. Ser feliz é uma obrigação. Que circulem os ébrios fazedores do amanhã. Navegar na maré dos bares é para poucos. A  música  pede passagem e a foto é a moldura da saudade.
Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O MARTELO DO FEITIÇO

O poder do olhar. Mãos que manipulam corpos e estradas. Caminhos desenhados na sola dos pés. Senhoras que gritam aos quatro ventos e destroem a colheita. Em 1692 o medo se instalou em Salém. Uma menina dorme nos porões da loucura. Parceiras do demônio apontadas nas ruas.  Pensar não é permitido. Fogueiras são repensadas  e a fome é constante. Coisas e pessoas  morrem todos os dias e os animais desaparecem. As nuvens cobrem os vilarejos próximos. Carne e peixe não são  ingeridos. Rezar causa desconfiança. Os puritanos estão a postos. Escrever é evocar o inferno. Centenas de mulheres queimadas na praça. A noite apaga o rastro da besta. Como uma estória que não foi contada.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

EDMEA TETUA

As cinzas da soprano foram atiradas ao  mar, num ritual de canto e saudade. Acordes foram ouvidos nas ilhas próximas e o Céu foi forrado com nuvens  em sépia.  Chapéus  e muita renda compunham  o figurino dos convidados. Rosas foram  postas nas ondas.  O perfume da partida. Em silêncio, o navio retornou ao porto da cidade italiana onde a cantora viveu. Comovente! Músicas profanas encheram as ruas de imigrantes. Máscaras esconderam dores e fitas riscaram o espaço. Como um baile de pipas na Nicarágua. A calmaria chegou com a chuva. Os barcos se recolheram.   A noite seguiu o seu curso. Poemas são pedaços de vida que desafiam o tempo.
Gurgel de Oliveira

terça-feira, 29 de outubro de 2013

O ANJO DO SONO JÁ PARTIU

É hora de tirar os sapatos do armário. O dia já raiou. Tem leite quente no fogão. Não lembre da noite passada. O recorte dos sonhos pode nos servir de roupas. Esqueça o que não foi dito. Cachoeiras descem pelas escadas e fazem pequenos rios no andar de baixo. Ainda é cedo para lembranças.  Ar puro e o aroma das flores são o meu beijo de bom dia. O saboneite é feito de cítricos. A cabana ficou no último susto noturno. A festa da luz começa agora. O galo cantou para  cutucar  o encanto. As ervas da horta devem ser retiradas. Os feitiços são possíveis e as estradas estão com fome. É o momento certo para acordar.
Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

REFLEXOS

Ausências  que habitam desertos. Lagartos deixam rastros na areia. Saudades  desenham mantos no rosto do dia  e correm espetando angústias por lugares não tão conhecidos do mundo. O ermo é o aconchego das mãos que tremem diante da caneta portadora da febre . Rasgar a folha não escrita é desistir do sofrimento da criação. A emoção se recolhe e permite que a razão se desfaça. As horas não ajudam. Não passam e se prendem a relógios... moradores das algibeiras que não acordam mais. Saber morrer é acomodar o corpo no aconchego da alma e esperar o sinal do anjo da memória O ermo acalanta  a carne. É o choro. Partir é limpar o rosto com pétalas de presenças  e recriar a palavra que não foi escrita.

Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

MANUSCRITOS

Rompimento do silêncio. Manhãs de chuva que não voltam mais. Alfinetes presos na garganta e pregos entre as unhas. O desconforto não vem com a falta da luz. A penúmbra sufoca quartos e saletas sem cortinas. Não é hora para reflexão. O corpo se desfaz em dores e a alma é cortada em pedaços. O tempo não passa. A insônia reveste camas e travesseiros. Bem distante dalí, bizontes e javalís desbravam as savanas e a África chora. Continentes são levados pelas águas e verdades são coladas nos edifícios. A lama umedece a rua. Bares e boates brilham no rosto da noite. Poetas e bailarinas se perdem no discurso do porteiro e a ribalta se rende ao branco.
Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

CONFISSÕES DE FELIPE

Quando eu era garoto, os sonhos não eram tão distantes e os dias pareciam mais longos. Esperávamos o anoitecer e nos recolhíamos mais cedo para que o ato de sonhar nos pegasse de surpresa. Rezávamos um Pai Nosso e nos cobríamos para que a escuridão nos vestisse de sono. Pássaros nunca vistos voavam bem próximos de nós. Minha mãe morria e o mundo acabava. A festa de aniversário era cancelada e o bolo sumia diante dos meus olhos. A escola não existia. A bola de muitas cores passeava pela casa. Elefantes e enfermeiras curavam dores e ferimentos. Rios e cachoeiras brotavam das paredes e os bichos da água se espalhavam pelo quarto. Era hora de acordar. Encarar a realidade e o café com pão e manteiga. Olhar em volta da casa e constatar que as árvores estavam no mesmo lugar. Passear pelo dia e torcer para que a noite e os cobertores viessem ao nosso encontro,  e  nos levassem outra vez ao desconhecido.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

VERSOS NO ESCURO

O musgo vai cobrir os nossos sonhos . Não teremos mais nomes e o passado será escrito nos muros. As nossas roupas, simples peças de varais. Lembranças   e fitas guardadas no armário. A cozinha vai parar. Carnes e verduras serão enviadas aos vizinhos. A ordem é para que portas e janelas permaneçam fechadas. Vasos e flores  derreteram  nos   esgotos . Corpos esculpidos e facas amoladas ao extremo. A lâmina corta o vento e divide o calor em partes iguais. Tem alguém respirando próximo aos potes de vinho. O atrevimento da ignorância tem o gosto de sangue expulso das veias . Não é justo  que retiremos  as unhas das crianças. Cartas com lacres  balançam nas correntes. Os escritores sentem saudades dos parágrafos. É hora de apagar as luzes. Tirem os olhos dos cabides e tentem observar  bem longe. Não é mais possível. As nossas retinas viraram adubo..

Foto de domínio público. 1900.

Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

SILÊNCIO


Maria está sem palavras. A contrição é um caminho sem retorno. O espaço é restrito e não há portas nem janelas. Os barulhos externos são orações que se perdem em fragmentos. Cabelos estão presos às  caixas de madeira. O que tem dentro dos baldes desperta  os olhos e risca os  lábios com alfinetes. Não falar é preciso. Costurar as bocas é uma obrigação diária. Se é dia ou noite, não sabemos. Esgotos são santuários que remendam abandonos. Quantas dores sentem as malas que nunca vão ser abertas! Rezemos para que a nossa pele não fuja. O aquecimento que precisamos se foi com a última primavera. Só nos resta o silêncio. Pregos e agulhas se desprendem do teto. Maria não fala nada. Apenas observa.

Gurgel de Oliveira
Foto de domínio público. 1900.


quarta-feira, 16 de outubro de 2013

TORMENTA



O lugar impressiona pela simplicidade. A forma dos objetos é desconhecida. Molduras protegem rostos e olhos que vigiam malas e camas. A luz do Sol não entra nunca e a parede não tem pele. Bolos e doces jamais foram vistos . O sabor é ignorado e  a refeição está queimada. Parece que o mundo parou. O ato de respirar não é exercido e árvores são vistas pela janela. Lá fora faz frio. Barcos e jangadas se preparam para inundações. Os peixes sentem medo da força da água. O quarto está no limite. Berços e garrafas navegam pelos corredores. É hora de subir nos móveis e procurar os bilhetes que não foram escritos. A mulher grita da cozinha. O fogão já se foi com as talhas e os tapetes choram no banheiro. A destruição já era prevista. Corpos pedem socorro e roupas são atiradas ao vento. Tratem de procurar abrigo. A casa não existe mais. Façamos jardins nas mantas que ficaram. Ratos e mentes podem dormir com as flores.

Gurgel de Oliveira

terça-feira, 15 de outubro de 2013

UM LOBO OLHA DE LONGE



O que tem do outro lado da porta não é revelado. O corpo é revestido com manchas e o passado se renova em instantes. Um conto de assombração passeia pelos corredores. As arandelas indicam que é começo do século vinte. As crianças dormem no quarto ao lado. Brinquedos de madeira se espalham pelo  outros cômodos da casa e os jogos de montar foram esquartejados. Do outro lado da porta as respostas se questionam. Revelar o segredo é fazer  a brincadeira perder o rosto  e colocar espinhos na refeição da manhã. A fechadura não oferece pistas. A luz das velas está no final. As armas respiram  perigo. Uma canção de adeus escorre pelos lustres. O cristal se despede das sombras e o pomar amanhece na escuridão. A governanta preparou o café e enforcou o sorriso.

Gurgel de Oliveira

Foto de 1912. Domínio público.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

FERIDAS ABERTAS

Estórias terão que ser reescritas. Os livros não abrem mais as suas páginas e os escritores se foram. É tarde para arrependimentos. Quartos e bibliotecas viraram pó. As paredes não sonham mais. É triste o sabor da verdade. Arrumem as malas com cuidado. Os ônibus saem em instantes e não existem  retornos. Estradas também serão refeitas. Não chorem, por favor. O momento não é para lamentos. É hora de correr e buscar abraços. Contem estórias ao vento. Palavras não morrem. Flutuam para sempre sobre porões. Comecem a escrever. O momento é oportuno.

Gurgel de Oliveira

domingo, 13 de outubro de 2013

A TERRA DE SANTA CRUZ E OS DEMÔNIOS



Descoberta da América. Europa entre luzes e trevas. O rosto do renascimento se descortina. A retomada da economia em crescimento e o comércio transoceânico anunciam um futuro próspero. Inquisição, fogueiras e torturas são institucionalizadas. O Brasil, inferno e paraíso no olhar do velho mundo, era presenteado com metal, pedras rutilantes e os presumíveis inimigos de Deus e da crença católica, torturados e condenados pelo Santo Ofício. Nas terras da colônia, cânticos eram entoados para trazer ao mundo dos vivos espíritos indígenas que já haviam partido. Fogueiras eram acesas e forasteiros  empalados e grelhados. Ossos e ervas compunham o ritual dos canibais. O batuque ajudava no transe. Crianças rodopiavam próximas ao fogo e ao sagrado. Bebidas alucinógenas  preparadas e  o jantarservido. O progresso acenava de muito longe. O tempo comandava a  servidão e o  sofrimento. A chuva vinha com força.Ventos sopravam  com as garras do diabo. Do outro lado do mar, mulheres amarradas ao fogo em nome do criador.


Gurgel de Oliveira

sábado, 12 de outubro de 2013

PITONISAS E SIBILAS

Os povos romanos, gregos e etruscos tinham um hábito constante de ouvir profecias. Os sítios onde as práticas proféticas se pronunciavam eram muitos. O mais procurado era o de Delfos, dedicado a Apolo e situado no sopé do monte Parnaso, em um cenário natural que encantava a todos. A Grécia era vista de cima e a emoção, sem limites. Citações a respeito do templo de Delfos são muitas nos textos de Homero. As Pitonisas, profetisas que revelavam o mundo invisível aos mortais são lembradas e evocadas até hoje. A serpente Pytton observa tudo, de algum lugar nas profundezas da Terra.

Gurgel de Oliveira

O MUNDO DOS BRINQUEDOS

Hoje é sábado. As reverências vão para as águas e suas deusas, para Aparecida, Nossa Senhora, e para as crianças de todas as horas, parques e   sorrisos. A alegria está solta nas ruas e os sonhos passeiam de carroça. Estrelas flutuam nos olhares que se perdem nas vitrines. Doces e confeitos serão feitos pelas fadas. O dia será mais longo e tristeza somente nos romances. À tarde, quando o olhar  do Sol estiver mais presente, os mágos vão bordar as ruas com circos e corpos elásticos da Mongólia, até que o tempo se desfaça em cansaço e o sono seja a melhor surpresa.

Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

BORDAR O CORPO E DESNUDAR A ALMA

O culto ao insólito torna o dia desigual. Suportar a rotina desgasta a pele da alma e sufoca o corpo. Façamos coisas não planejadas para tirar os pássaros do marasmo. Escrever no asfalto pode ser uma solução. Esculpir o destino nas pedras também é uma  uma fonte de prazer. Procuremos poetas nos mercados habitados por ratos e salamandras e deixemos que a tarde nos envie uma mensagem. A paciência é inimiga do tempo. Navios passeiam em mares não imaginados e o rosto do porto se deforma. Existem lápides no lado esquerdo do peito e grandes animais nas avenidas. Chegou a hora de apagar a luz do dia para que a noite se vista de princesa. Palácios dançam na pracinha e encantam estátuas em movimento. Não é oportuno comer mesas e cadeiras. O jantar está servido e violinos estão no cardápio. Os moribundos que insistem em não morrer serão convidados à mesa.
Gurgel de Oliveira


Foto de domínio público. 1900.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A GUERRA ENCANTADA

Os livros que não foram lidos sumiram no meio dos destroços. Todos correram quando ouviram o barulho. A rua está deserta e tem marcas de choro nas paredes. Os que estavam dormindo não conseguiram sair do sonho e viraram sombras em caixas de vidro. As casas sentem a falta do piano. O maestro perdeu a batuta e anjos estão sem as penas das costas. Um pedaço de pão é encontrado vivo na calçada. Brincadeiras de roda são sopradas pelo vento. Não se pode olhar as horas e os relógios congelaram nos pulsos. Pensar é morder a realidade e espantar o bruxismo. As camas não foram arrumadas . Bonecas  feitas de lenços serão pescadas no riacho. A água dói no corpo e sal é jogado nos olhos. Sobreviver é pecado. Não tentem nascer outra vez. Fugir do medo é a única saída.

Foto de 1902. Domínio público.

Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A CHEGADA DA LIBÉLULA

Faces sem nome se misturam aos porcos. Pérolas e pescoços perdem o brilho na multidão. Moedas e fotos da América passam pelas mãos do soldado pretoriano e Roma é redesenhada nos papéis que sustentam o tablado. Corpos sem órgãos resguardam hospitais. Estórias de confrontos chegam aos ouvidos e decoram o altar para a Missa do  Santíssimo. E a procissão carrega nas costas o silêncio engasgado  pelas beatas que agora são riscadas  no concreto. Em quais estradas estão enterrados os olhos da estátua que veio das montanhas? O rio não está  preparado para barcos que não se sustentam. Os prédios ao redor do porto se escondem na penumbra e vomitam móveis feitos de árvores e adagas. São sonhos do Oriente que brotam das portas em Budapeste. A Hungria está presa na garganta de Praga. Tem gárgulas em todas as fachadas nos olhando com sede e vontade de nos fazer voar. O canto da liberdade não é doce de criança. Palmas para o sanfoneiro que embala cegos e aprendizes de águias. Ser livre  é somente um rosto com a expressão da pedra que dança e balança  a água.

Foto de 1900. Domínio público.

Gurgel de Oliveira


PASSAGEM PARA O FIM

Cento e cinquenta mil soldados desembarcam em Caen, Norte francês. A invasão da Normandia foi a mais ousada operação aeronaval da história militar. Alemães são cercados por tropas soviéticas e a capital da germânica  foi tomada pelos russos. Japão e Estados Unidos, no Pacifico, provocam centenas de mortes. Hiroshima e Nagasaki são engolidas por um cogumelo. O samurai  adormece. O ano é 1945. Em Paris, próximo ao subúrbio, natália caminha  pelas ruas procurando coisas e famílias. Na Polônia, uma casa chora e pessoas correm em direção ao vazio.

Gurgel de Oliveira

Foto Internet, sem indicação do autor.

SÓROR MARIANA DO ALCOFORADO - 1640-1723.

Mais cartas estão sobre a mesa do claustro. Sóror Mariana teceu as linhas da noite escrevendo ao amado. O Convenro Nossa Senhora da Conceição, em Beja, Portugal, abrigava jovens nem sempre com vocação para o sagrado. Encerrada nos muros cristãos  por mera decisão paterna, a ousadia e o sofrimento da freira e suas cartas incomodaram França e Portugal, numa época em que o conservadorismo ditava regras e aprisionava amores nas igrejas que apontavam para o Céu. O Marquês Noel de Chamilly, combatente na Guerra  da Restauração e destinatário do sentimento que dizem ter levado a Abadessa ao descanso final, nunca enviou respostas  e sumiu para sempre, por entre ruelas das cidades francesas. Em 1812, documentos encontrados por estudiosos que buscam rastros da  vida de Mariana, afirmam que até Jean-Jacques Rousseau, filósófo do iluminismo e  pioneiro  do romantismo,  foi tocado pelos manuscritos da religiosa.
Gurgel de Oliveira

sábado, 5 de outubro de 2013

A FOTO E A NEBLINA

Tarde de inverno.  Avenida Montparnasse, 1920. O poeta da imagem, Man Ray, fotografa um amante do Simbolismo. T.S.Eliot caminha como um monge. O sobretudo não o protege da nuvem de gelo que cai sobre as ruas.  Café e charutos são servidos no café da esquina. Um homem olha de longe e corre para um abrigo. Mulheres passam  em sentido contrário. Gotas brancas caem das núvens e cobrem as calçadas. A cidade se agita e os lampiões despertam. Mais um texto é escrito e riscado no tempo. A música marca o momento da dança. Crianças dormem nas margens da loucura. Um livro de Baudelaire é  aberto no balcão. Canetas deslizam e rascunham cenas cubistas. París abre os olhos para a festa. E o rio observa de longe os bocejos da madrugada.
Gurgel de Oliveira

Foto Internet. Não há referencias sobre o autor.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

ANNE SEXTON

O almoço está servido. A poeta desfia palavras  enquanto come legumes e caça. O inverno chegou com o rigor dos ursos e o olhar de Anne mergulha no vazio. As mãos não param e versos são escritos na toalha. Mesas e confessionários se confundem. A elegância tem um preço e cigarros são queimados. O véu da tragédia está presente e  o carro  dorme na garagem. Doces são servidos com café, creme e licor. As duas amigas se despedem. A casa está cheia e estrofes são lidas no final da tarde. Lenços são jogados no pasto e nomes riscados no mármore. Alguém canta baixinho e tulipas enfeitam cristais. É a hora do silêncio. A estrela apagou.
Gurgel de Oliveira

PARA NÃO ENTRISTECER ALGUÈM

Partir e desbravar as pontes fazem  parte do plano. Logo que o Sol se esconda pegaremos o mapa que vai nos auxiliar na fuga. Dizem que as estradas oferecem perigos e não podemos dormir. Bichos não conhecidos dos biólogos guardam cercas e portões. O medo não faz parte da bagagem. Pouca roupa e pedaços de pão vão ser os nossos companheiros. Serão  dez noites de caminhada. As bolhas dos pés terão que ser furadas e a febre é inevitável. . O poeta não vai. Escritos não serão nossos parceiros. O frio e a chuva trarão a poesia que precisamos. Levaremos estradas nos bolsos e trilhas amarradas à cintura. Já está quase na hora. Bebam água para umedecer o corpo e molhar o espírito ressecado pelo verão que não acaba. E as flores, alguém já pegou? Lápides  enfeitadas com pipas  trarão vida aos nossos olhos. Sinais  vão ser marcados  na areia e dirão ao mundo que passamos por ali. É hora da despedida. Coloquem os corações no vento. Emoções só atrapalham. Estão prontos? Desenhem  as estradas nas mãos  e comecem a andar. É a cerimônia do adeus.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

WILD NIGHTS - EMILY DICKINSON

O que dizem as cartas que movimentam as mãos e dedos do olhador? O mundo vai acabar?  O limite entre vida e morte é uma criança com asas e espada? As linhas das mãos também falam do dia seguinte. Do que não conhecemos. A dor do outro está escrita na terra. Olhar com atenção é descobrir segredos. O inviolável desliza na pele do rosto e desfigura os lábios. A carta do louco é a esperteza do jogo. A Lua significa magia e mundos acobertados pelo espírito da mandingueira. Hoje é quarta-feira. Olhemos para o fogo como destruição e renascimento. Os ossos estão guardados em um saco de alinhagem. O buraco feito na terra não aceitou o alimento. Queria carne e cartilagem. É possível riscar cemitérios no diagrama? A resposta está na sola do pé. Junto ao chão de argamassa e cheiro de fome. A toalha da mesa não pode ter estampas. O tarô não fala próximo das rosas. Jardins e vasos não são bem vindos. O eremita indica os caminhos e as armadilhas tatuadas na virilha. Não tenha medo da mandala. O saco de ossos se despede e tenta descansar. Sonhar para sempre é guardar os olhos na água. A palma da mão não revela mais nada. Poemas de Emily Dickinson forram o leito de morte. A poeta suspira e morde a carta da torre. O desejo de não viver é revestido com mortalhas. A América não chora. Um gosto de carne queimada encapa livros e cadernos. A cremação é imediata.

Gurgel de Oliveira

Foto coleção Museu Emily Dickinson.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O PÁSSARO

Recebemos notícias de pessoas que pertencem a um passado próximo. Algumas estão em busca da felicidade,  outras continuam na estrada carregando o destino nas costas. Não deixemos que abram feridas nas nossas almas. As cicatrizes demoram e as dores nos impedem de voar, de dormir,  e de  enfeitar o quarto com sorrisos. As marcas na alma são para sempre. Carregamos por toda a vida e, as vezes  que lembramos, um traço de melancolia percorre o nosso corpo e retira as cores que pintam o tempo e nos trazem um pouco de alegria. Já é hora dos pássaros. Os cantos se misturam e vão costurando o amanhecer. Hoje é dia de reverenciar  as ruas. Esquinas são palácios e avenidas atalhos para os jardins. Aos que moram no passado, presos  à estórias contadas nas rodas de violão, que venham dedilhar novas canções e bordar as nossas noites com acordes nunca ouvidos antes. E aos amigos que vivem com os anjos, numa esfera que ainda não podemos alcançar, que voem sobre as nossas cabeças e nos tragam equilíbrio. Não deixemos que retalhem as nossas almas e nos atirem sal no rosto sofrido dos nossos sentimentos. Se não temos asas, o pássaro menos distante sai em quinze minutos. Vamos voar e tentar diminuir as dores da saudade. Um dia passa!
Gurgel de Oliveira

terça-feira, 24 de setembro de 2013

OS MISTÈRIOS DO CÉU


Dona Celeste tem hábitos não convencionais. O que chamamos de normalidade, para ela não passam de manias cotidianas cultivadas pelas pessoas que não tem o que fazer.Na casa não há luz nem água. Comida não entra e os vizinhos não a cumprimentam. Acham que ela não tem a cabeça no lugar e precisa de remédios e  tratamentos. Dona Celeste faz fogueiras todos os dias, no final da tarde. As crianças não se aproximam e toda a vila fecha portas e janelas. As estrelas são contadas e anotadas num caderno e desenhos são rabiscados...Como se Dona Celeste visse, além das estrelas, criaturas de outros mundos com anatomias não  habituadas aos nossos olhos. Ela passa dias e noites no matagal que fica próximo da vila e, quando retorna, diz que estava contando as árvores e algumas cerejeiras foram arrancadas. Diz, também, que passeou pelas núvens dentro de rodas de metal e que foi muito bem tratada pelos anões de prata. No último São João, após acender a fogueira como de costume, Dona Celeste entrou na mata e nunca mais foi vista. Foi embora numa bola de fogo, levando numa sacola galhos,  folhas e cerejas.
Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

OS DESENHOS DO SAGRADO

Desenhar na pele e buscar caminhos pelo corpo. Evocar o sagrado com tintas azuis e plantar sentimentos menos dolorosos em torno da alma. Encarar o dia com a força e a determinação dos tigres. Um rasgo de alegria passou aqui e deixou muitas  marcas. A dançarina adormece num quarto de hotel próximo ao deserto. E a areia vai ficando mais quente quando o Sol insiste em retirar roupas e peles. Tatuagens são passagens  para sempre. O corpo é o transporte da tinta e vamos envelhecer juntos. Momentos de arrependimentos não são bem vindos. A dançarina desperta numa tarde de chuva. Ribaltas e rotundas ainda dormem. Não exite hora para acordar. Somos escravos do sono e as camas são de prego,  água e termas.  .Sombras de  guerras estão lá fora. Desenhar a  paz na pele do mundo não é possível. O encantamento tem dores e as massagens não resolvem. Não é possível ser feliz assim. Acendam fogueiras em Andorra e derretam as montanhas. A música começa e os pares se juntam.Já é madrugada e as rugas se foram.
Gurgel de Oliveira

Foto de 1900. Domínio público.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

ANA PÁDUA

No ano de 1910, Ana Pádua perdeu o marido em um acidente inexplicável. Toda a família aderiu ao luto.O solar dos Pádua mergulhou num silêncio nunca presenciado antes. Os criados também cobriram seus corpos com orações e   sentimentos. Os encontros de domingo foram suspensos. Aniversários foram esquecidos e os móveis da sala cobertos com mantas e lençóis. Ana Pádua, com todos os títulos de nobreza e uma elegência ímpar, sentou numa cadeira e calou-se para sempre. Comida e água, nunca mais . As tentativas de despertá-la  não obtiveram êxito. Muitos anos se passaram e a família partiu amparada por anjos e arcanjos. Aos que rondam o solar, dizem ouvir murmúrios e gemidos vindos do salão, onde outrora reinavam bengalas, cartolas,   cristais e espumantes. Ana Pádua não partiu com os seus e circula diariamente pelos cômodos do solar, como se desse ordem aos criados sobre o tema do próximo baile.
Gurgel de Oliveira

Foto 1900. Internet.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

SOMBRAS NO PARQUE

 Sara desapareceu numa manhã de inverno. A família não esquece e procura pela garota até hoje, sempre movida pela esperança e o desejo de revê-la . A história é cercada de versões e mistérios. Pessoas dizem ter visto uma  criança  entrando no parque com um objeto nas mãos. Outras contam  o que vem na  cabeça só para sentirem que estão vivas.  O parque já está iluminado. É dezembro e as festas são inevitáveis. Luzes piscam nas   avenidas  e lojas. Dona Vera, a mãe de Sara, enfeita todos os cômodos da casa e  espera  uma surpresa.  Uma visita repentina. De preferência, antes da ceia. A foto da menina está no pé da árvore, com um presente embalado e amarrado nas fitas azuis. Todos chegam para o jantar. Dona Vera parece  ter fogueiras  na face e os pertences da filha  presos na garganta, mas o choro não vem. Quem sabe no próximo Natal.
Gurgel de Oliveira

Foto de 1900. Sem referências do autor.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O MUNDO REDESCOBERTO

Tardes de sábado na pracinha mais próxima. O vendedor de balões contrasta com o verde das árvores. Crianças correm de um lado para o outro e as horas torcem  para que as luzes brilhem. As carpas se divertem no laguinho do chafariz. Bolsas são esquecidas nos banquinhos perto da grama. E o palhaço grita do alto que hoje haverá espetáculo. É o circo de todos os dias com pipocas, trapézio e bailarinas. O mágico escondeu a moça numa caixa e mexeu com a ilusão dos lenços. Boquiabertas , as crianças procuram desvendar o mistério com o mesmo olhar que encantava as carpas. Os malabaris enfeitam  as   nuvens do picadeiro e as luas descem até o chão . É noite de circo e de algodão doce. O mágico desperta os coelhos e o mundo se redescobre na cartola.

Gurgel de Oliveira