terça-feira, 28 de abril de 2009

A MÃE QUE BALANÇA O BERÇO

Dona Eugênia é uma mulher de mais ou menos setenta anos de idade, sorriso gentilmente forçado e muitas estórias para contar. Cheguei na sua casa ao cair da tarde e logo percebi uma atmosfera de ausência e dor em cada cantinho por onde passávamos. Dona Engênia perdeu o filho querido em circunstâncias trágicas, durante uma briga de rua, em algum lugar da cidade de Salvador, no ano de mil novecentos e noventa e dois. A foto do rapaz está espalhada por toda a casa e todos os seus pertences arrumados em um quarto... roupas, sapatos, livros, capacetes, cartões com palavras amorosas de amigos que não acreditam na sua partida, presentes de namoradas e fotografias de momentos marcantes da sua vida. Dona Engênia arruma o quarto todos os dias, coloca flores nos vasos próximo das fotos do rapaz e reza para que ele não fique distante nunca. Durante a nossa conversa, já por volta das oito horas da noite, Dona Eugênia me oferece um café e chora dizendo sentir a presença do filho adorado. Confesso que fiquei emocionado diante dessa senhora e supliquei aos deuses resignação para as mães que arrumam os quartos dos filhos que dormem para sempre , mas que elas ainda não perceberam.
Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Jesus de Nazareno, Calor, Transformismo e Libélulas

Numa pequena cidade do recôncavo baiano, onde Jesus de Nazareno parece acalmar os ânimos e o calor, do alto de uma colina, o jovem Jean Márlus desfia o cotidiano com paciência, talento e uma enorme vontade de ser feliz. Durante o dia o garoto de 26 anos trabalha como eletricista, aderecista, montador de estruturas para o funcionamento das feiras e festas da cidade e decorador das cerimônias de casamentos, que acontecem de vez em quando, só para mexer com a rotina do lugar. À noite, quando todos os pardos viram gatos e o teor alcoólico interfere no metabolismo das praças e dos bares, o jovem Jean Márlus passa a se chamar Jhow Quevara, uma mocinha apimentada que veste roupas sintéticas e usa o corpo longilíneo para provocar e acender desejos proibidos, por entre pontes e becos. E começa a fechação! Viados saem de todos os lugares e enchem a praça de cores e gritinhos . A cosmética grita nos rostos de bonecas e olhos delineados. Os modelitos são estranhos e revelam corpinhos e personalidades fortes , assumidas. A música e as luzes tomam conta da praça e transformam a cobiça e o pecado em confetes e êxtase. Jhow sobe numa estrutura de madeira e mostra o que sabe fazer. Requebra e atira o seu olhar de odalisca faminta em direção às suas primeiras vítimas. O clima é quente e a festa esquenta ainda mais. Entre uma dança e outra, olhares desconhecidos se cruzam e marcam desencontros futuros. Jhow se afasta e segue o caminho do rio. A noite se alonga e promete loucuras. O jovem atravessa a ponte , ajeita o saiote artesanal enquanto a festa segue o seu destino e o aguarda, ansiosa e bela.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 22 de abril de 2009

ESPERANÇA E GLÓRIA

As ruas dacidade amanheceram molhadas e frias; os bairros mais distantes do centro sofrem e os seus moradores lamentam objetos perdidos e vidas em perigo. É sempre assim na histórica Salvador. Enquanto os tambores tocam no Pelourinho, milhares de pessoas tentam enxugar a umidade de um cotidiano quase sempre dolorido. É chegado o tempo de pensar em dias melhores. Dias em que não tenhamos que segurar os nossos sonhos para que as águas não os carreguem para longe de nós. É tempo de pensar no próximo e dar as mãos aos que nada comem. É tempo de arregaçar as mangas e fazer força para que o sol nos alcance com o calor e a luz. É hora de brilhar e distribuir sorrisos aos que cumprem pena. Aos que moram nos calabouços e se alimentam de terra e lama. A resignação traga fatalidades e crenças. A vontade de estar vivo supera qualquer sintoma de tristeza e intranquilidade. O mundo é uma armadilha e precisa ser vencido. Por que não pedir à Senhora das Águas que nos traga roupas secas e nos cubra com lençóis de esperança e glória? Será que é pedir muito? Acho que não! A solução sempre chega de onde menos esperamos. Axé!
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 15 de abril de 2009

CASA GRANDE, ENGENHO E CANAVIAIS


Chegamos à Fazenda Senhor do Bonfim por volta das oito horas da noite e fomos recebidos pela dona da casa, uma senhora simpática e carismática. A fazenda fica nos arredores de Nazaré das Farinhas, cidade de muitas estórias e da famosa farinha de copioba, uma das principais fontes econômicas da região. A casa impressiona pela fachada, móveis coloniais, lustres e arandelas de porcelana francesa da segunda metade do décimo oitavo século. O pé direito de todos os cômodos é muito alto, portas e janelas largas e uma vista intrigante para os verdes vales que servem de pasto para o gado e os cavalos. Tomamos banho e seguimos para a sala de visitas onde uma mesa repleta de coisas gostosas nos esperava. Matamos a fome e conversamos até altas horas como se não tivéssemos que fazer nada no dia seguinte. Já era madrugada quando nos dirigimos à varanda. O céu estava estrelado e quente. O canto dos pássaros noturnos rasgava as cortinas escuras que abraçavam a mata fechada. Gritos e pedidos de ajuda pareciam vir da senzala que fica na parte inferior da CASA- GRANDE. Mulheres negras corriam agarradas aos seus filhos rumo ao canavial. Palavras de ordem eram cuspidas das bocas dos FEITORES e o engenho iniciava mais uma jornada. A moenda e a roda d'água, sinônimos de sangue e progresso, testemunharam o nascimento do sol com repulsa e ressentimentos.
Gurgel de Oliveira

sábado, 4 de abril de 2009

Fogo, Água e Quiromancia

É manhã de quarta-feira. O galo cantou mais cedo para acordar o Senhor do Fogo. O homem que nos transmite noções de justiça e faz com que os nossos olhos sejam íntegros e austeros. As quartinhas já estão cheias e os obis já nos trouxeram recados e as punições que se fazem necessárias. As árvores estão mais verdes. Os desejos de prosperidade povoam a casa vermelha e se misturam com o barulho das saias velhas, guardadoras de cheiros, sonhos e cabeças exaustas. Não há mais desesperança. As lágrimas se foram nos braços e nos seios fartos da Mãe D'Água. As crianças correm. O sol acaricia os nossos corpos e borda sorrisos nas curvas mais sombrias das nossas almas. É hora de partir. As pontes estão de pé e nos convidam para um passeio pelo destino. Não importa onde nos levam os caminhos. As encruzilhadas escondem revelações que estão nas palmas das nossas mãos, tatuadas pelos deuses como estórias que nunca vão ser contadas. Só nos resta aproveitar. Hoje é quarta-feira e o Senhor do Fogo está prestes a descansar. Não façamos das nossas vidas uma cama fria. Existem promessas de dias mais felizes e noites de calmarias, tatuadas no mapa insólito e invisível que molda a nossa ânsia de despertar.
Gurgel de Oliveira