quarta-feira, 24 de junho de 2009

SEU JUSTINO

Seu Justino acordou às cinco horas da manhã. Queria sair cedinho em busca de trabalho e comida para os filhos e a mulher doente, dona Rosinha. Tomou banho na bica do quintal, bebeu o café com sabor da noite anterior e pensou sobre o seu passado numa cidade do interior nordestino, repleto de tardes de domingos não felizes. Seu Justino agora caminha por estradas e ruas acordadas, planejadas por homens capazes de tudo para imprimirem suas marcas ao longo da vida. Pessoas, rostos, mãos e objetos ocupam os espaços possíveis nas avenidas movimentadas. É o dia tomando forma, tentando ser forte e viril. Seu justino atravessa viadutos, cultiva lembranças dos filhos adultos e continua  sua caminhada em busca de esperanças, biscoitos recheados e almoços divertidos com a família. Seu Justino, homem de quase setenta anos, otimista e disposto para o trabalho, desapareceu lá para as bandas do subúrbio, onde os trens que rasgam o final da tarde engolem pessoas, esperanças e histórias de vida. Dona Rosinha, frágil e açoitada pelas epidemias, deseja reencontrar o marido, nem que seja em algum lugar da memória.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A visitante dos trópicos  atravessa a sala de jantar e cumprimenta os senhores que estão sentados à mesa de jacarandá cravejada com  marfim e jade.  Os castiçais e os tapetes que forram o chão de ladrilhos nos remetem aos sons e cheiros cítricos das  mentas tunisianas. O azul  dos lustres é o mesmo  que reveste os olhos da visitante.  Agora ela  sobe as escadas com corrimão de Mármore  Carrara, adornado com pequenos relevos lapidados em alabastro. Nas medinas, onde a vida real acontece de forma dura, cheia de ânsia, apego e fome de longevidade, as pessoas comuns correm em busca do pão e mergulham suas ironias e medos em porões de incertezas e lama. A visitante, descalça e coberta com uma túnica de buganvílias pintadas à mão, desce a escada com uma grinalda de tâmaras frescas e muitos pistaches em volta do rosto, e atira mosaicos romanos pelas grandes janelas do Norte africano, como se provocasse mais uma luta de gladiadores,  numa arena de Cartago.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Maria do Carmo, A Estranha...

O meu nome é Maria do Carmo. Trabalho como empregada doméstica, tenho desejos estranhos e gostaria muito de conhecer Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. A minha filha morreu num acidente e não gosto de falar sobre o assunto. Tenho vestidos vermelhos...adoro vermelho e carne de porco assada. As pessoas não me encantam e a cidade onde moro é muito pequena e muito feia. Também gosto de poemas sujos, escritos por pessoas sujas e desajeitadas. Fiz uma tatuagem nas minhas costas...é um dragão com olhos muito grandes...parece um calango. A minha patroa me deu um perfume de aroma doce, não gosto e tenho dor de cabeça só de pensar. O meu corpo é como uma estrada perdida numa floresta encantada. Tenho vontade de aprisionar o tempo e comer iguarias exóticas numa confeitaria de Casablanca. Sobre os meus desejos estranhos... é muito difícil falar. Sinto crianças grudadas na minha pele. São crianças judias de algum lugar da Polônia. Elas choram muito e sentem a falta das mães que foram queimadas em campos de concentração nos anos de guerra. Sinto dores fortes nos olhos e um gosto de sapatos velhos na minha boca. Às vezes tenho a sensação de estar boiando num rio de águas vermelhas. Pessoas com roupas escuras atiram lenços brancos sobre Budapeste. Tenho saudades da Hungria e das casas que habitam ruas e vielas podres. Os meus olhos continuam doendo e não tenho vontade de chorar. Mundo estranho! Minha filha olha de longe e finge saudades dos meus abraços. Abraços amargos de uma mãe ausente que sente cólicas, tem desejos estranhos e não conhece Dubai...
Gurgel de Oliveira