sexta-feira, 26 de abril de 2013

TEM UMA SENHORA NA JANELA

As pedras do chão  estão molhadas e sapatos são atirados no coreto. Crianças passam correndo e carregam gritos nas lancheiras de muitas cores. Na Rua das Flores é sempre assim. De repente o entardecer invade as casas, igrejas e  corações menos preparados. Os cabides adormecem nos quintais e os gatos viram pássaros e adornos de fachadas. Tem um vulto na janela do sobrado. Crianças e lancheiras param na Esquina do Medo e comem biscoitos olhando para cima. O sobrado não é pintado e tem fachada neoclássica. Mulheres vestidas de preto acompanham um cortejo fúnebre. A pessoa que está no caixão não tem nome nem marcas no rosto. É apenas o registro de uma breve  passagem pelo tempo. É hora de ir para a cama, grita uma professora  bordada nos cobertores que cobrem os móveis das saletas e quartos. Os becos estão sem luz e o Sol já tomou outros rumos. É necessário que sonhemos para que a vida tenha sentido. É preciso que o sono apareça para que os sonhos despertem e  tomem forma. O poste de iluminação desenha sombras e sorrisos nas paredes da escola. Tem uma senhora na janela.
Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O MANUSCRITO DO MAR MORTO


Frutas e doces  sobre a mesa da sala. No bloco de notas uma carta incompleta. Quem estará  escrevendo? Memórias de porões escorrem dos  bordados que forram a  cristaleira. Os castiçais  silenciam.  morangos e cajueiros enfeitam os  quintais. Pinceladas e muitas cores dão sentido ao quarto que está no fundo. Parece neblina o que vemos pela janela. A menina sem rosto aparece ao pé da árvore,  enrolada nos tecidos brancos. Os  bancos de areia mudam de cor. O céu escurece e o mar avança. O sal conserva a comida que está na despensa e linguas  despencam do telhado. É o mundo de Tamires se descortinando de forma não linear e nos mostrando que pimenta e olhos não combinam. Mulheres correm com estatuetas nas mãos e mastigam folhas. A chuva cai e molha a roupa que está no varal. Mais palavras são escritas na carta. São pedidos de socorro e anúncios sobre vendas de órgãos humanos. O vento leva os lençóis para junto das nuvens. Tamires não enxerga, mas sente nos dedos o corte das lâminas que rasgam  caças e vísceras. Mais letras são escritas. Alguém fugiu com o bloco de notas e a carta flutua no Mar Morto,  dentro de uma ânfora de vidro. Tamires corre pela floresta e se mistura às folhas. Tulipas brotam ao amanhecer.
Gurgel de Oliveira