sexta-feira, 16 de outubro de 2009

EDIFÍCIO SANTA FÉ

Segredos impronunciáveis ainda estão escondidos nos corredores e apartamentos do edifício Santa Fé. O prédio tem frente para o mar e é todo revestido de pastilhas brancas e azuis, muito comuns na arquitetura de linhas retas produzida nos anos sessenta do século vinte. A morte misteriosa da jovem bailarina que sonhava ganhar o mundo com muito talento e sapatilhas é lembrada pelos moradores mais antigos e ignorada pelos inquilinos mais jovens, cheios de sonhos promissores e projetos que incluem parcerias sexuais e farras à beira mar. Dona Georgina tem o hábito de montar quebra-cabeças de cem peças. Os puzzles formam bichos, paisagens e cidades. É uma forma que ela encontrou de expandir o seu universo de dezesseis metros quadrados, enfeitado com bibelôs e os miados dos gatos sufocados e olhos quase sedosos. À noite, quando todos os pardos são felinos e o prédio se ilumina para acolher grandes amores ou pequenas desilusões, a música invade as escadas de incêndio e os elevadores de grades decoradas. Na opinião de dona Georgina, que terminou de montar mais um quebra-cabeças, é o fantasma da jovem bailarina assassinada, que tenta fazer na madrugada barulhenta o ensaio do seu próximo espetáculo, ao som inebriante dos que agonizam e tentam desfiar as cortinas que enrolam os encantos da morte.
GURGEL DE OLIVEIRA

terça-feira, 13 de outubro de 2009

DEVANEIOS - para Luciana Accioly

Sophia observa de longe os soldados armados que invadem as ruas de uma pequena cidade em Andorra. Das montanhas a natureza presencia mais um massacre que vitimiza crianças e velhos estrangeiros. Sophia espalha os brinquedos curdos pelo imenso terreno que cerca a casa onde vivem familiares e parentes agregados. As sirenes de alerta tocam num volume aterrorizante assustando a população que ainda respira. Sophia atira poemas pela janela dos fundos da casa. Jornais com notícias africanas se espalham pelas calçadas ensanguentadas, enfeitadas pelas portas de vidro quebradas com extrema violência e sem nenhum sentido. Meninas refugiadas correm a bordo de suas bonecas de louça compradas em Praga. Carrinhos de bebê descem escadarias de madeira nobre e esfregam veludo surrado nas paredes. O silêncio que vem das padarias é constrangedor. Os pães não foram assados e os estômagos choram famintos. Andorra sofre. Sua história desce pelos esgotos e a memória da cidade vira suco. Sophia observa tudo de uma distância quase real. É o mundo se mexendo diante de montanhas brancas, engolidas pelas nuvens que maltratam o final da tarde. Sophia caminha e procura a amiguinha de escola e a encontra próxima ao boeiro central da cidade, caçando bonequinhas de louça de origem tcheca.

GURGEL DE OLIVEIRA