sexta-feira, 27 de março de 2009

MARIA DO AMPARO

Os sapatos batem no tablado com muita força e determinação. Os violões são dedilhados por homens barbados, personagens secundários de lendas sevilhanas. Os babados vermelhos e pretos do vestido de seda rodopiam e impressionam os olhos dos forasteiros que circulam pela plateia. Maria do Amparo atira o seu olhar e se deixa viajar pela música que fala de bodas carregadas de incestos e contentamentos não vividos. Baila, Maria! Gritam os mais atirados. E Maria baila! A visão que temos do seu corpo é de uma tensão que incomoda e transforma o sono em convulsão. O som das castanholas que brigam e se contorcem nos seus dedos é o mesmo som inebriante que seduz os marinheiros gregos, na zona portuária de Barcelona. Maria do Amparo ilustra os sonhos e as vontades sórdidas de prostitutas e cafetões, que buscam ganhar suas vidas nas ilusões noturnas de pacatas vilas medievais, e que muitas vezes nos confundem com criaturas da noite, boêmios perdidos nos horizontes sujos de Madri. Baila, Maria! Baila e atira para bem longe a sensação de desassossego que nos causa o desamparo.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 20 de março de 2009

A NINFA DE BIZÂNCIO - Para Silvana Moura

A menina muçulmana corre pelas vielas de pedras da Capadócia. Nos olhos, a saudade de tempos remotos e das tardes que anunciavam as festas luxuriosas de Bizâncio. O império onde a fé e o poder eram cultuados como deuses ficava no Estreito de Bósforo, águas que separam oriente e ocidente e onde o canto dos pássaros é perturbado pelos gritos dos vendedores de tapetes, jóias e especiarias. O ouro em abundância e as gemas coloridas enfeitavam os corpos de mulheres manipuladoras de ilusões, ópio e prazeres incompletos. As termas públicas e as tabernas preparavam homens e ninfas turcas com bálsamos excitantes e compotas de damascos e mel. Alguns nativos da Capadócia afirmam que a menina muçulmana é a reencarnação de uma entidade etrusca, e que já foi vista no topo de minaretes e nas cúpulas sagradas das basílicas , clamando aos deuses e aos homens que a libertem das garras afiadas de Constantinopla.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 13 de março de 2009

SEXTA-FEIRA13

Vamos torcer para que as guerras não aconteçam e as mães não tenham que chorar pelos os seus soldados mortos.Vamos rezar e depositar flores brancas nos túmulos dos que se foram amarrados em bombas, defendendo o fundamentalismo religioso.Vamos ver filmes, ler livros e passear em sites que nos remetam ao prazer de viver pacificamente...simplesmente. Hoje é sexta-feira 13. Os mercados populares da cidade exalam cheiros e odores de mandingas preparadas pelos sábios senhores, detentores dos segredos das ervas e dos dialetos falados e cantados nos rituais banto. O hábito de carregar um galho de arruda atrás da orelha torna-se obrigatórioentre os que acreditam que o dia de hoje não trará doçuras. Mas não percamos as esperanças.As estrelas brilharão mais tarde e a noite nos trará o consolo que necessitamos para uma boa madrugada de sono . A lua cheia nos dará forças para que possamos atravessar a tarde com elegância e vontade de beijar o pôr-do-sol. Que a sorte nos abrace e cubra os nossos corpos com pétalas de rosas ocidentais; afinal, o dia hoje não está para brincadeiras...

Gurgel de Oliveira

quarta-feira, 11 de março de 2009

SOBRE VERDADES E CASARÕES

Palavras presas em cartazes que não anunciam nada. Propagandas de prazeres baratos para todas as etnias e nacionalidades. Homens polacos em busca de coxas malhadas e sem nenhuma instrução. Lugares que oferecem de tudo, inclusive o calor proibido dos famosos quartos marroquinos. Bares e botecos que acolhem Pedro, João, Francisco e Helenas loucas por um beijo molhado vindo dos mares asiáticos. Monumento em arenito, coluna oitavada toscana revestida com azulejos portugueses do século XVIII encimada por adornos em porcelana branca. Casarões seculares que guardam nos cômodos curiosas histórias de herdeiros da colonização. Pessoas que passam, sem destino certo, às vezes desesperadas, às vezes caladas e, muitas vezes, cansadas de uma existência medíocre e sem nenhum sentido. Ruas estreitas e becos com cheiros fortes, mas com um pouco de encanto. Tenho todas estas coisas no lugar onde moro. Aos domingos, quando o sol insiste em partir deixando um raio de melancolia, fica o desejo de uma segunda-feira menos dura e mais próspera, em algum canto dos nossos olhos.
Gurgel de Oliveira

terça-feira, 10 de março de 2009

Os Quatro Cavaleiros

À sombra da frondosa amendoeira, os quatro cavaleiros descansam e desfiam o segredo dos oráculos. Espadas de cortes mágicos refletem o semblante austero do grande senhor de todos os feiticeiros. E a mulher de olhos cristalizados risca os caminhos de um futuro próspero em volta das pedras que cobrem o chão. É no pequeno espaço de tempo que separa os trovões dos relâmpagos que a frondosa amendoeira entorpece as suas folhas em suaves perfumes. E os quatro cavaleiros, a bordo de antílopes, partem para longas e inimagináveis viagens, conduzidos e confortados por uma fina e imprevisível neblina...

Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 9 de março de 2009

A CIDADE E AS PESSOAS

A cidade acorda agitada. A mulher das ruas carrega pedaços de imagens barrocas nas mãos sujas que já embalaram crianças. Por onde andarão as crianças que brincavam de desenhar cavalos nos vestidos longos de seda que dormiam aprisionados em vitrines frias e sem cores? Pessoas correm e a cidade acorda ainda mais...A sarjeta se esconde e carrega para dentro dos esgotos a sede de fantasia e o sêmen da noite anterior...do dia anterior que virou noite e transformou esquinas e praças em parques de perversão. Um velhinho sábio e experiente passa para um outro plano. A família se reúne para comemorar a passagem e chorar as cores das colagens que já fazem parte da parede do apartamento. Livros e cantigas se misturam com as brincadeiras de quintal. A infância do viajante é resgatada como um circo órfão povoado pelos malabaristas sertanejos e bailarinas embriagadas com tantas fantasias. Todos comem muito e a cidade continua agitada. A fotógrafa arruma na mesa da sala de jantar registros de imagens e viagens que nunca vão nos permitir esquecer que a vida é um conjunto de olhares famintos, espalhados pelos lugares que dormem, acordam e suspiram todos os dias.
Gurgel de Oliveira