quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O ROSTO DO TEMPO

Dores que habitam corpos nascidos de ventres quase sempre ocupados. Crianças que atiram dentes nos rios que cortam os vales colombianos e refrescam vidas que brotam das serras andinas. Lendas que ilustram livros e lições estudantis, quando as tardes esfriam e tingem de branco o terreiro das casas aquecidas por fogueiras e chamas que rodopiam. Os sonhos que alimentam as nossas noites nos deixam confusos. Acordamos com sensações estranhas nos olhos e a pele do rosto mais velha, sem elasticidade. Quanta confusão! O dia que começa nos arrasta cheios de esperança e vontade de encontrar o nosso lugar no mundo. Mundo estranho! Orelhas são encontradas em terrenos baldios observadas e degustadas pelos ratos que os homens criaram e alimentaram com restos de salada e salmão. É hora de correr. Rasgar o figurino circense e virar marabalista nas passarelas que ligam lojas de coveniências às estações de transbordo que transbordam a cada enchente, cheias de gente e de pentes. Cabelos são cortados e atirados aos rios mortos que insistem em cortar cidades e vielas. E o dia vai desfiando dores. As dores roubam suspiros e mais crianças atiram dentes nas serras andinas. É o começo do frio que engole o rio e fura os olhos do vento. É o grito do tempo!
Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

A FORASTEIRA

Na sua penúltima viagem, a forasteira desembarcou na cidade do CAIRO a bordo de mochilas surradas, guias de viagens e muita ânsia de desbravar o solo desconhecido do VALE DO NILO. Percorreu os mercados da cidade onde os dialetos desafiam o tempo e constroem o cotidiano impregnado de estórias não reveladas e túmulos não tocados, que ainda escondem segredos circundados por jade e calcário. Como passageira do navio que desce o rio que banhou escravos, escribas e negras importadas da Núbia, a forasteira fotografou templos, bebeu coca-cola e trocou informações com turistas dos quatro continentes, queimados pelo sol que tinge de dourado as pirâmides e mastabas da NECRÓPOLE DE MÊNFIS. E continua a aventura! A lua atira a sua luminosidade sobre DEIR-EL-BAHARI, onde talhado na montanha descansa o templo funerário da rainha RATCHEPSOUT, a mulher de gestos e mãos elegantes que marcaram a décima oitava dinastia. E por falar em rainha, a forasteira pergunta a um arqueólogo sobre NEFERTITI, a jovem que foi confundida com uma princesa do império MITANNI, mulher de rara beleza e esposa de AKHENATON. As respostas encantam e sugerem novas perguntas. Amanhece no NILO. A forasteira sente saudades da filha que deixou no seu pais natal. Lembranças da infância enfeitam o café da manhã servido ao ar livre. Pessoas conversam e atiram olhares . Águas calmas e clima de nostalgia bordam as horas que rodopiam e resgatam o calor da tarde. É o tempo apressando o fim. A forasteira sente dores. É hora de voltar! Voltar correndo e abraçar o último sopro de vida. Beijar as faces da família. Dar adeus ao próprio corpo. Se despedir do sorriso alheio e arrumar a bagagem para a última viagem. Anúbis, o deus da morte, abraça a jovem senhora com encanto e confiança. Atravessam as nuvens que separam os mundos e partem apressados , carregando nas mochilas o enígma da esfinge.
Gurgel de Oliveira

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Sobre Generosidade e Corpos Congelados

Da cadeira estrategicamente colocada no centro da sala, Maria Clara observa os móveis, objetos e papéis que estão dispostos em volta dos seus olhos. Sabe exatamente a data da chegada de cada quadro exposto nas paredes, e de quem ganhou as gravuras que enfeitam as colunas do corredor que serviu tantas vezes de pista de corrida, quando ela ainda brincava de ser criança. Maria Clara escreve cartas para os amigos pelas mãos de dona Guilhermina, uma vizinha de pele clara e feições absolutamente entristecidas, decorrência do choque que sofreu ao saber detalhes sobre o acidente do qual Maria Clara foi a única sobrevivente. Os donos da casa, pais da menina, não tiveram a mesma sorte e hoje passeiam sem rumo, do outro lado da vida, tentando observar e entender o que aconteceu. Dona Guilhermina conta estórias de esperança e superação à jovem enferma, diz que a vida é feita de surpresas e que nada é impossível. Maria Clara ouve tudo com muita atenção...seus olhos parecem crianças sufocadas tentando comer as próprias mãos. A vontade de sair pela casa, correndo, é tão forte que faz o sangue ferver e provocar sensações de movimento e liberdade. Mas tudo continua imóvel, até os pensamentos mais velozes não passam de agonias respirátórias. Uma vez por semana, nas sessões de exercícios físicos que fazem Maria Clara resgatar tremores e sentir o peso da alma, a casa se enche de luz. Os móveis e os objetos brilham e desenham lábios pelos corredores de colunas brancas, repletas de gravuras. Dona Guilhermina veste-se elegantemente e adentra pela sala trazendo rosas e votos de melhoras. Os vizinhos rezam e forram a beira do rio com barquinhos e bichinhos de papel.
GURGEL DE OLIVEIRA