segunda-feira, 27 de agosto de 2012

EM BUSCA DAS NUVENS ROSAS

O caminho parece não ter fim. Maria da Penha tenta chegar ao destino  com a irmã mais nova já faz vários dias. A poeira já cobriu a pele e irritou narizes e gargantas. Não existe sombra na estrada e as crianças parecem bonecas moldadas no barro. A noite se aproxima e o medo de bichos e fantasmas aflora. A fome é tapeada com os espinhos do mandacaru. O barulho da cascavel exige silêncio e corpos agarrados ao medo constante, cheio de fantasia e perversidade. É inútil traçar um mapa. Elas não sabem para onde estão indo. É a intuição  que indica quais tarefas devem ser cumpridas. As meninas dormem! O barulho dos roedores desperta mundos rupestres e dores ancestrais. Será o fim do mundo? Crianças perdidas numa estória sem começo, meio e fim...Sonhos com brinquedos e bolos são uma constante nas noites de umidade e sono acordado. Tem alguém aí? Montanhas e pedras silenciam e atiram rosas no amanhecer.

Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 26 de julho de 2012

AlBERT CAMUS E NOITES INSONES

As bonecas de Samira estão no sofá que fica no quarto de dormir. O lugar é escuro e as paredes são forradas com papel e desenhos que sugerem pessoas da família. Samira sonha com brinquedos de cera e olha para o lustre que tem rabo de tatu e gotas de cristal. Em Paris, Albert Camus observa da janela um grupo de crianças que vão à escola. E a Argélia sofre com a guerra, a fome e a morte que ronda as ruas manchadas de pele e sangue. Samira corre fugindo da peste e Camus rascunha figuras romanas nas cadernetas de memórias.A casa fica mais escura e as bonecas sentem medo. É o início da noite que apavora. Crianças voltam da escola na capital francesa. Um homem come pão na calçada e Samira rasga os vestidos de menina antiga. Cidades e povoados se recolhem em clima de oração. Os cinemas exibem películas espanholas e o fundo musical é flamenco. Tudo se dispersa! Sofás e santuários escuros fazem parte do mundo de Camus. A madrugada tapa a boca de Samira e o lustre se cala para sempre. Que mundo confuso! Samira corre pelos corredores e suja as paredes com vômito. O sofá está vazio. Os vestidos que foram rasgados aparecem no parque da cidade. Paris acorda ao som do silêncio que constrange. Duas bonecas são encontradas mortas ao lado do canal. Samira corta os dedos das mãos e some na penumbra do quarto.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 8 de junho de 2012

A FOTOGRAFIA

Nos olhos de Marina o que mais impressiona é a sensação de água estagnada, como um desejo de chorar preso a uma época onde as crianças não externavam emoções e os brinquedos acenavam, de longe, com lenços impregnados de jogos ocultos,  abortados pelo calor e o barulho das águas do riacho. A parede onde a foto está dependurada é azul e a casa permanece fechada, como um tesouro ancestral, um segredo sem solução. No mês de Abril, quando as pipas de cores opacas enfeitam o CÉU do lugarejo, um grito de alegria é ouvido pelos andarilhos que passam próximos da casa, festejando a Primavera.  É Marina tentando sair da foto para olhar as borboletas e as flores do jardim, só para sentir o gosto de ser criança outra vez.
Gurgel de Oliveira

sexta-feira, 30 de março de 2012

A HISTÓRIA DE HELENA

Seu Antônio carrega o corpo da filha Helena numa mala de couro, pelas estradas que cruzam o sertão do Ceará. A poeira e o Sol ressecaram a pele do rosto, embaçaram os olhos e partiram os lábios do pai que chora todos os dias ao lado da mala onde mora a filha sem vida . Estórias da zona rural ou delírio?  Nos finais de tarde,  seu Antônio abre a mala e joga água do açude no corpo de Helena, na esperança de   recriar movimentos,  fazendo travesseiros e cobertores de folhas e galhos  do Outono. As árvores não existem mais e a paisagem não encanta o velho pai que tem ferimentos nas palmas das mãos, dores no peito e cicatrizes na alma. Instantes que doem no corpo e dilaceram a dignidade. Aos que perguntam o que tem na mala, seu Antônio responde que é um tesouro preso ao silêncio que vive no quarto dos fundos de uma casa abandonada. À noite, quando as estrelas brilham no céu que parece próximo e os fantasmas dançam e cantam para Seu Antônio, Helena salta da mala e beija o pai com os lábios sujos   de saudade, e grita ao redor da fogueira que esquenta as lembranças de algum lugar preso em memórias.
Gurgel de Oliveira

sábado, 18 de fevereiro de 2012

FETICHE


O ano é mil oitocentos e oitenta e a cidade é Veneza. O Pallazo Ducale, mais conhecido como Palácio do Doge, está decorado com veludo e frutas. Fitas de cores estão presas ao teto. A orquestra se prepara para os primeiros acordes. O erudito invade os salões e os convidados começam a chegar. Nas carruagens, homens e mulheres escondem alegrias e dores nas máscaras de tecidos finos. Em meio às colunas góticas que cercam o salão, dois olhares se cruzam. Suas identidades não são reveladas. Sentimentos e conquistas são misturados ao ponche e mãos acariciam o perfume das peles. A mulher corre pelos corredores. As janelas revelam gondoleiros e canais de águas e cheiros. A música esquenta o ambiente de tâmaras e orgias. Frascos com aromas asiáticos são abertos. Gotas de sândalo escorrem pelos seios da diva. As velas estão pela metade e são feitas de sebo caprino. Os olhares se desejam e ninguém sabe quem é o outro. A madrugada grita pelo dia. As gôndolas balançam e maestros dançam. Rendas e máscaras dormem e o baile se cansa. É hora de revelar os rostos. A diva, de olhos que lembram as amêndoas, corre pela praça São Marcos e não se mostra ao mundo. E a festa se desfaz na cidade agarrada ao passado.
Gurgel de Oliveira

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

"MEMÓRIAS DE ADRIANO" - (Para o amigo Adriano Padilha)

Já faz algumas décadas que o céu não é mais o mesmo aos olhos do menino que brincava com as nuvens. As noites na cidade grande nos impedem de olhar estrelas e o progresso que nos reveste apagou o lúdico e o que restou da poesia. Estive algumas vezes com o menino guardião das galáxias e das figuras de algodão que dançam sobre as nossas cabeças. A bordo de conversas sobre deuses e SEMIÓTICA, passamos algumas tardes construindo navios e outros meios de transporte que nos levassem à Idade Média e a outros tempos imemoriais...Só para não deixar que o anoitecer, de dentes afiados e retalhos de verdade, tirasse nossas fantasias onde os sábios, sarcófagos e Afrodite, nos faziam acreditar que o mundo não é apenas uma cama forrada com gelo e circundada por fantasmas e outras criaturas da escuridão. Numa tarde de verão, quando o sol anunciava a sua despedida por mais um dia de trabalho, fomos ao castelo onde vive a família do menino e uma caixinha de preciosidades. Comemos e conversamos muito. Observei a cidade do alto e me senti protegido dos estômagos indigestos que se escondem no aconchego das esquinas. Cheguei ao baile e já era noite. O navio era branco como o céu de outros verões. No rosto, uma máscara inspirada nos carnavais de Veneza. Nas mãos, três cristais encantados, antigos moradores da caixinha de preciosidades, só para não perder a poesia.
Gurgel de Oliveira

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

"Tempo de Baile" - Para Mourão Cavalcante

Um beijo de princesa está colado ao teto de madeira da nossa casa. Poemas de escritores não conhecidos se desprendem do pijama e enchem os vasos noturnos de angústia e tardes não dormidas. O refluxo rasga o estômago da criança morta e a sala principal anuncia velórios só para matar o tempo. O nome do livro é Tempo de Baile! O escritor retira frases de cidades frias e recria assassinatos nos sítios históricos que descansam no mapa. Para qual dos lados teremos que olhar agora? Existem sepulturas estampadas nos doces de sofrimento de Cora Coralina e as pontes de Goiás não protegem mais os rios. Somos os donos dos nossos fantasmas que só adormecem depois da meia noite, quando o Sol se esconde embaixo do travesseiro com medo dos ataques da Lua. É tempo de bailar o tempo e esconder as máscaras nos rostos que não dizem verdades. Existe mesmo a verdade ou tudo não passa de um sonho embriagado pela saliva da dança? Em qual dos bailes perdemos o jeito de dançar e lamber feridas abertas? Perguntemos ao escritor... Foi ele o criador da festa.
Gurgel de Oliveira